Para um leigo, trata-se de acontecimento curioso: um avião não pôde pousar no aeroporto de Vitória porque algo semovente estava na pista. Não era grande. Nem cavalo nem cachorro. Mas se movia. Por precaução, era melhor aguardar no ar enquanto alguém em terra verificava. Pelos jornais, a informação é que o setor de fauna ou biologia do aeroporto foi enviado ao local. Tratava-se de um caranguejo. À distância, ainda segundo a imprensa, uma especialista identificou o crustáceo como guaiamum (Cardisoma guanhumi). Trata-se de uma espécie de caranguejo em relação a qual foram construídas várias histórias.
Na segunda metade do século XVI, Fernão de Cardim registrou a espécie com o nome de guanhumig, explicando tratar-se de animal tão grande que “uma perna de um homem lhe cabe na boca”. Embora fosse comestível, Cardim alertava que o caranguejo se alimenta de uma erva que o torna venenoso. Mais ainda, ele se assusta com trovões e abandona sua toca. Sendo muito grande, ele pode representar perigo para a pessoa, que deve se defender com arma de fogo. Embora de terra, ele vive em buracos na borda do mar. (CARDIM, Fernão. “Tratados da terra e gente do Brasil”. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1980).
Em 1627, frei Vicente do Salvador informou que o guaiamum habita a parte mais alta e seca do manguezal, acreditando que as fêmeas ovadas abandonam suas tocas com as primeiras águas do inverno e vagam pelos campos, estradas e casas, oferecendo-se gordas para serem comidas (SALVADOR, Vicente do. “História do Brasil: 1500-1627”. Belo Horizonte: Itatiaia/São Paulo: Edusp, 1982).
Não cabe esperar desses cronistas informações consistentes sobre a realidade. Os europeus ainda conheciam muito pouco as terras americanas. Eles não eram cientistas. Aliás, a ciência moderna dava seus primeiros passos. As informações fornecidas pelos povos nativos acabam sendo deturpadas pelos estrangeiros. E o maravilhoso impressionava o leitor que vivia na Europa. Contudo, nem todas as informações são fantasiosas. De fato, o guaiamum não vive na lama como seu parente uçá. Ele costuma fazer sua toca em terreno de restinga ou na borda do manguezal, mas geralmente perto da água. Ainda há quem tema comê-lo por julgá-lo venenoso. Ele se alimenta de animais em decomposição e do fruto da aninga (onde ela existe), planta da família das aráceas. Essas plantas produzem toxina que pode provocar edema de glote. Quanto às fêmeas ovadas oferecendo-se às pessoas para serem comidas, conforme informação de Vicente do Salvador, deve se tratar da andada que todas as espécies de caranguejo fazem em tempo de troca de carapaça e de acasalamento.
Por fim, a grande dimensão desse caranguejo e o perigo que ele representa para os humanos. Em 1919, o naturalista Hermann Luederwaldt informou ter encontrado um exemplar tão grande de guaiamum nos manguezais de Santos que teve de abatê-lo com tiro de espingarda. Não é mais um observador comum que fala, mas sim um cientista (LUEDERWALDT, Hermann. “Os manguezais de Santos”. Revista do Museu Paulista tomo XI. São Paulo, Diário Oficial, 1919). Os grandes exemplares dessa espécie mereceram guerra sem trégua simplesmente como alvo, como perigo imaginário e como alimento. Restaram os pequenos, que ainda apresentam grande dimensão quando comparados com o uçá. De tão predada pela economia de mercado, ele foi integrado à lista de espécies ameaçadas de extinção.
O biólogo Emanuel Roberto de Oliveira Botelho, pesquisador do Ibama e estudioso dos hábitos do guaiamum há bastante tempo, informou-me oralmente que o habitat normal do guaiamum é a periferia do manguezal. Espera-se que o manguezal chegue até onde a influência das marés atinja a superfície e se misture com água doce. Contudo, as marés avançam por baixo também, pelo lençol freático. Botelho explica que o guaiamum faz suas tocas na área de influência subterrânea das marés, além mesmo do ecossistema manguezal. Assim, a espécie atua como demarcadora do manguezal e de sua área virtual. Como o guaiamum necessita de área livre para a reprodução, qualquer obstáculo existente no entorno do manguezal dificulta ou impede seu ciclo reprodutivo. Por este prisma, o guaiamum passa a ser um aliado dos que defendem o manguezal. No fim das contas, pelos estudos de Botelho, existe um manguezal com água salobra superficial, onde nascem as plantas que lhe são exclusivas, e um manguezal com água salobra subterrânea, onde as plantas exclusivas não germinam, mas onde está a casa do guaiamum. Este caranguejo presta um grande serviço ao demarcar a área mais ampla do manguezal.
No fim da década de 1990, encontrei vários indivíduos de guaiamum completamente desorientados no estuário do rio Macaé (RJ). Eles estavam cavando tocas em quintais de casas e até mesmo no interior delas. O guaiamum havia perdido o senso de orientação? Teria sido o efeito de alguma erva alucinógena, como escreveu Fernão de Cardim no século XVI? Não. A área habitada por ele é que estava sendo invadida por ruas e casas. A abertura do canal Engenheiro Antonio Resende, ligando a lagoa do Campelo ao rio Guaxindiba, no norte fluminense, criou uma área para expansão do manguezal. Numa das muitas visitas ao local, eu estava acompanhado da grande e saudosa bióloga Norma Crud. Ela quis inspecionar as margens do canal além do ponto em que o manguezal terminava. Ela buscava tocas de guaiamum e as encontrou seis quilômetros acima da área de mangue.
No caso do aeroporto de Vitória, o aparecimento de um guaiamum na pista de pouso não se trata de um acontecimento curioso e pitoresco. Basta examinar um mapa para se concluir que o aeroporto foi construído no estuário do rio Santa Maria, onde se formou a maior área de manguezal da baía de Vitória. O guaiamum estava perdido, à procura do seu terreno. A presença dele na pista de pouso é mais que uma curiosidade para a imprensa e para o leitor. Trata-se de um claro indício de desequilíbrio ecológico, que, aliás, acontece em toda a baía de Vitória, densamente aterrada e urbanizada. Não será surpresa de novas visitas de guaiamum ocorrerem na pista de pouso