Rio Negro

Por Arthur Soffiati

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11/08/2025

Arthur Soffiati

Intelectual por vocação e ofício, ecólogo militante, pioneiro da área de História Ambiental no país

Não é só encanto. É fascínio o que o rio Negro exerce sobre pessoas interessadas. Exercerá sobre os animais? Formador do rio Amazonas com o Solimões, ele é o sétimo maior rio do mundo em volume hídrico. Sua água escura o distingue dos rios barrentos da Amazônia. O encontro das águas do Negro com o Solimões é simbólico. Elas continuam a correr separadas por longo trajeto pela diferença de temperatura, densidade e velocidade de ambos os rios. Sem ignorar os problemas de desmatamento da grande floresta e das enchentes e secas que sofrem os rios, cabe observar que o Negro corre na parte mais íntegra da Amazônia. 

São Gabriel da Cachoeira, a capital indígena do Brasil – Alto Rio Negro. Foto do autor

Também chama a atenção a diversidade cultural da bacia do rio Negro antes da chegada dos europeus. Na sua bacia, habitam os Arapaso, Baré, Barasana, Karapanã, Kubeo, Makuna, Miriti-tapuya, Pirá-tapuya, Siriano, Tariana, Tukano, Kotiria. As etnias Maku compreendem Dow, Hupda, Nadöb, Yuhupde, Kakwa, Nukak. As etnias do rio Içana, também na bacia do Negro, integram os Baniwa e os Coripaco, falantes do aruak. O quadro étnico e linguístico é complexo. Esses povos habitam área de fronteiras entre Brasil, Colômbia e Venezuela, fronteiras que foram definidas por europeus, não por eles.

Francisco Orellana é considerado o primeiro europeu a alcançar o rio Negro, em 1541. Ele foi utilizado para ligar as colônias espanholas do Pacífico e do Atlântico. Ingleses e holandeses também andaram por lá. Os povos nativos ofereceram resistência aos europeus. Expedições científicas igualmente subiram o Negro. O primeiro a obter informações volumosas foi o brasileiro Alexandre Rodrigues Ferreira, que liderou uma expedição à Amazônia e a Mato Grosso entre 1783 e 1792. O resultado foi monumental: descrições e desenhos de plantas, animais, indígenas. No século XIX, várias expedições foram empreendidas por naturalistas e antropólogos estrangeiros. Os nomes que se destacam são os de Humboldt (que não entrou no Brasil), Martius, Wallace, Tchudi, Koch-Grünberg e vários outros. 

Matriz de São Gabriel da Cachoeira. Foto do autor

Minha viagem à Amazônia, em maio de 2025, permitiu-me descobrir quem descobriu o rio Negro, tanto os povos que primeiro lá chegaram e lá se instalaram, desenvolvendo a sua sabedoria, quanto os europeus que visitaram e estudaram a região hoje entre Brasil, Venezuela e Colômbia. Já li “Peixes do rio Negro”, de Alfred Russel Wallace (São Paulo: Edusp/Imprensa Oficial do Estado, 2002), um dos fundadores do evolucionismo junto com Darwin; “Petróglifos sul-americanos”, de Theodor Koch-Grünberg, (Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi; São Paulo: Instituto Socioambiental, 2010); a experiência que o médico Drauzio Varella adquiriu em muitas viagens ao rio Negro e que reuniu seus escritos em “O sentido das águas” (São Paulo: Companhia das Letras, 2025). Li também os contos escritos e reunidos por Vera do Val em “Histórias do rio Negro” (São Paulo: Martins Fontes, 2007).

Mas não apenas. A criação da Capitania de São José do Rio Negro, em 1775, intensificou a presença de brasileiros e portugueses na bacia do rio Negro. Missionários católicos já estavam realizando seu trabalho de catequese nos rios que formam a bacia. Os manau ofereceram resistência às conquistas dos brancos. O líder indígena Ajuricaba, feito prisioneiro, atirou-se nas águas do Negro, preferindo a morte. Robin M. Wright informa que “A década de 1740 foi um período intenso de operações escravistas por parte de portugueses e espanhóis no Noroeste Amazônico – do Médio Rio Negro ao Alto Orinoco.” (“História indígena e do indigenismo no alto rio Negro”. Campinas: Mercado das Letras/São Paulo: Instituto Socioambiental). Houve conflitos. Muitos nativos morreram não apenas com as doenças levadas pelos brancos, mas também nas guerras. Houve captura de indígenas para escravização. 

Pôr do Sol no Rio Negro – foto do autor 

O pensamento europeu entrou no noroeste amazônico de maneira triunfante, acreditando que conseguiria escravos e convertidos. Mas as culturas dos povos conquistados pela força não podem ser apagadas por completo. Houve processos de aculturação. Lideranças indígenas mesclaram suas culturas tradicionais com o cristianismo e criaram concepções mistas. Apareceram “profetas”, uma característica marcante dos séculos XIX e XX. Até hoje, o baniwa Kamiko é considerado o maior profeta do noroeste amazônico, sendo chamado de Cristo pelos seus seguidores. Seu filho Uétsu continuou a mística do pai. 

O mais curioso aconteceu com a missionária protestante Sophie Muller. Norte-americana, ela decidiu levar o evangelho aos indígenas do Noroeste Amazônico e se tornou uma líder messiânica entre eles. Observemos que o contexto favoreceu concepções milenaristas. Os povos nativos estavam sendo muito explorados por militares e comerciantes. Essas lideranças crescem nesse contexto. Elas não pregavam o igualitarismo dos “Atos dos Apóstolos”, mas instigavam seus seguidores a se afastarem dos brancos e terem sua própria vida. O caminho é voltar a sua vida comunitária, mas como cristãos. O rio Negro tem sido objeto de muitos estudos. 

Encontro dos rios Negro e Solimões, formando o rio Amazonas – Foto do autor

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