Fica difícil inverter a ordem e demonstrar que os rios Itapemirim, Iconha e Benevente não ficam no sul do Espírito Santo, mas que a capitania, província e estado do Espírito Santo, ao longo do tempo, constituiu-se envolvendo vários rios que já existiam quando os europeus, representados pelos portugueses, chegaram a um continente que batizaram de América.
Dedico-me ao estudo das relações das sociedades humanas anteriores à chegada de Pedro Álvares Cabral e das sociedades de origem europeia e africana com o ambiente físico e biológico entre os rios Macaé e Itapemirim, área que denomino de ecorregião de São Tomé pela unidade ecológica, econômica, política e cultural que apresenta. Estendo os limites dessa ecorregião à zona serrana. Meus estudos se concentram mais nos tabuleiros e nas planícies da ecorregião. Ultrapassei os limites estabelecidos e penetrei ao sul do rio Macaé, chagando à Região dos Lagos. Ao norte, ultrapassei o rio Itapemirim, chegando ao rio Jucu. Para o interior, avancei até a Zona da Mata, em Minas Gerais. Mas reconheço minhas limitações no conhecimento das áreas além dos meus limites originais. Contudo, elas não me são estranhas.
O Itapemirim é um pequeno rio com nascente na serra do Caparaó e foz no Oceano Atlântico, numa extensão de cerca de 200 quilômetros. A bacia também é pequena. No século XVI, com a instituição do sistema de capitanias hereditárias, ele foi usado como limite entre as capitanias de São Tomé e Espírito Santo por acordo firmado entre os donatários de ambas e reconhecido pela Coroa portuguesa. Batizaram-no então de rio Santa Catarina em homenagem à rainha de Portugal. Há autores que defendem a existência da vila de Santa Catarina das Mós em sua foz como segunda sede da capitania de São Tomé. Parece consistente, embora Marataízes tenha soterrado os vestígios do povoado.
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Ainda no final do século XIX, a bacia contava com grande cobertura florestal, como informa o naturalista Manoel Basílio Furtado (“Itinerário da Freguesia do Senhor Bom Jesus do Itabapoana à Gruta das Minas do Castelo”. Campos dos Goytacazes: IFF/Editora Essentia, 2016), mas já havia marcas de desmatamento. A vila de Itapemirim, na foz do rio, data do século XVIII. A cana foi o primeiro cultivo da bacia, substituído pelo café e pelo eucalipto, além da pecuária e da mineração. Atualmente, 17 municípios se formaram em sua bacia, sendo um em Minas Gerais. O desmatamento reduziu a grande floresta estacional a amostras vestigiais. A urbanização se intensificou no século XX e continua crescendo no século XXI. Cachoeiro do Itapemirim é o maior centro urbano existente na bacia. Urbanização implica em aumento populacional e em poluição, pelo menos em países pobres.
O desmatamento em larga escala pela agricultura e pecuária está associado à erosão, ao assoreamento e às profundas alterações no regime hídrico. As enchentes e estiagens no rio Itapemirim são ilustrativas desse processo. Embora existam projetos de reflorestamento, eles ainda se mostram insuficientes para contrabalançar os danos causados pela agropecuária ao longo dos séculos.

Ilustrativa é também a enchente que afetou a bacia, ou parte dela, em 2020. Em 1815, saindo do Rio de Janeiro rumo a Salvador na primeira grande expedição científica europeia pela costa brasileira, o príncipe naturalista alemão Maximiliano de Wied-Neuwied, na foz do Itapemirim, fez um apontamento interessante: "O rio, no qual se viam alguns pequenos brigues ancorados, é muito estreito, mas comporta certo comércio de produtos das plantações, como açúcar, algodão, arroz, milho e madeira das florestas. Um temporal, que desabou na serra, veio mostrar-nos quão rápida e perigosamente sobem na zona tórrida; porque o rio se tornou logo tão caudaloso, que quase transbordou: aliás, tem sempre correnteza maior que o Itabapoana." (Viagem ao Brasil. Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/EDUSP, 1989) Maximiliano observou um fenômeno parecido ao que se denomina hoje de cabeça d´água. Lembremos que, em 1815, a cobertura florestal era extensa. Cheias sempre ocorreram, mas sua capacidade destruidora foi acentuada por ação humana em dois séculos.
O príncipe fala também em extração de madeira e na agricultura. Devemos considerar que as estiagens e as enchentes estão se tornando cada vez mais acentuadas por conta das mudanças climáticas. Elas não decorrem de causas naturais e sim do adensamento do acúmulo de gases causadores do efeito-estufa liberados por atividades humanas. Chuvas muito fortes, como as que se abateram no sul do Espírito Santo em janeiro de 2020, são resultado da ação humana coletiva em todo o mundo. Ao se precipitarem, as águas pluviais encontram um ambiente propicio a transbordamentos, alagamentos e enchentes.

Na bacia do Itapemirim, o caso mais ilustrativo foi o de Vargem Alta. A cidade ergue-se num vale que canaliza a água e arrasta tudo, como sugere o nome de vargem em altitude. A água precipitada do céu é muito volumosa para pequenos rios desprovidos da esponja florestal. Só se pode mesmo esperar transbordamentos. Não se fala mais em cheia e sim em enchente. As cheias eram naturais e anuais. Eram também previsíveis. As enchentes, por sua vez, são irregulares. Elas podem acontecer com intervalo de muito anos, assim como as estiagens, que tendem a ser mais frequentes. Cachoeiro do Itapemirim ilustra bem os dois fenômenos.

Uma solução para as mudanças climáticas é problemática porque deve derivar de uma decisão mundial e se processar lentamente. Não tenho esperança nessa solução. O que se pode fazer localmente é preparar-se para a violência das variações climáticas, o que não se pode providenciar da noite para o dia. Além do mais, parece que os governos locais não estão preparados para agir a médio e longo prazo.

