Reflexões sobre a guerra da Ucrânia

Por Arthur Soffiati

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29/03/2022

Arthur Soffiati

Intelectual por vocação e ofício, ecólogo militante, pioneiro da área de História Ambiental no país

Ética e análise.

Para ser pacifista, não é necessário ser intelectual. Qualquer pessoa pode condenar a guerra e suas consequências. É como cidadão que condeno todas as guerras, seja a da Rússia contra a Ucrânia; a complexa guerra da Síria, com múltiplos envolvimentos, a guerra da Arábia e Irã no Iêmen, matando a população diuturnamente e esquecida do mundo, a da Líbia, com envolvimento dos Emirados Árabes, os ataques do Estado Islâmico nem Moçambique e qualquer outro conflito no mundo. Uma guerra sempre desaloja, desabriga, expulsa, mata, destrói bens materiais e patrimônio cultural. Como pacifista, não espero o fim de conflitos. Apenas desejaria que eles fossem resolvidos diplomaticamente, como se a guerra fosse um meio ultrapassado de resolver desentendimentos entre países.

Mas a guerra existe. Como historiador, não posso apenas manifestar simpatias e antipatias. Devo me esforçar para compreender e explicar, como preconizava o historiador  francês Lucien Febvre. A compreensão sempre tem limites. Ela depende da documentação disponível, do distanciamento necessário e das limitações do analista. A imprevisibilidade e a incerteza também devem também ser levadas em conta.

Geopolítica da atualidade.

Por trás da Federação Russa, existiram os poderosos impérios czarista e a União Soviética. Ambos tiveram territórios mais amplos, chegando mesmo à América do Norte, como no Canadá. Hoje, amputada de vários países, a Federação Russa continua sendo o maior país do mundo em extensão territorial, além de contar com o maior potencial de armas nucleares do mundo. Entre 1945 e 1991, a União Soviética e os Estados Unidos foram os mais poderosos países do mundo, mantendo um estado de conflito chamado guerra fria. Os países do mundo se dispuseram em três categorias: países da área central (URSS e EUA), países da área de equilíbrio (países da Europa Ocidental e Oriental, Canadá, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia) e países periféricos (os do chamado Terceiro Mundo ou em desenvolvimento). As duas potências centrais evitavam uma guerra direta, algo que quase aconteceu em 1962, com a crise dos mísseis de Cuba. Os países da zona de equilíbrio também evitaram as guerras. Os conflitos ocorriam na periferia, com envolvimento das duas potências e de seus aliados da zona de equilíbrio. Evitava-se, assim, um conflito mundial possivelmente nuclear, embora não fossem evitados os males de guerras convencionais.

Por um processo interno lento, a zona de equilíbrio da União Soviética começou a ruir em 1989, com a queda do Muro de Berlim. Desfez-se o Pacto de Varsóvia, tratado que unia os países do leste europeu à URSS, assim como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) liga os países da Europa Ocidental aos Estados Unidos. Em 1991, a própria União Soviética chegou ao fim, com a perda de várias nacionalidades e com sua reorganização sob a denominação de Federação Russa. Embora continuasse como potência, a Rússia perdeu seu protagonismo num mundo bipolar. A China, que vinha crescendo como potência econômica e militar, passou a ocupar a posição de polo antagônico aos Estados Unidos. O mundo todo se tornou capitalista, embora não tenha adotado a democracia liberal como forma de governo. Tanto a China quanto a Rússia são países capitalistas com governos autoritários que competem com Estados Unidos e os países de sua esfera de influência. Voltamos, metaforicamente, a um mundo semelhante àquele que existiu entre 1815 e 1914, com países capitalistas liberais e autoritários disputando o poder mundial. A luta, então, era travada entre países da Europa ocidental e oriental. O mundo de hoje é tripolar. Dois polos se destacam: EUA e China. O terceiro é a Rússia, que tenta voltar a ocupar posição mais destacada.

Situação da Ucrânia.

Pessoas simples, professores universitários e intelectuais perguntam por que o ocidente dá tanta atenção à Ucrânia e se cala diante das atrocidades cometidas no Oriente Médio e na África, ou seja, nos conflitos fomentados pelo próprio ocidente. Do ponto de vista ético, cabe condenar tais conflitos. Do ponto de vista geopolítico, a Ucrânia é um país que integra a área de equilíbrio do mundo. A Rússia está envolvida na guerra da Síria, cometendo lá atrocidades que não são condenadas pelos seus admiradores (na esquerda, reina ainda um saudosismo pela União Soviética). A situação é bem diferente com relação à Ucrânia, um país da área de equilíbrio do mundo, que estava prestes a ingressar na OTAN e na União Europeia. A invasão do Iraque e do Afeganistão pelos Estados Unidos é um ato abominável eticamente, mas do ponto de vista geopolítico não tem o mesmo efeito que uma possível integração da Moldávia na OTAN.

Objetivos da Rússia. 

A OTAN deveria ter se extinguido em 1991, com o fim da URSS e da guerra fria, assim como aconteceu com o Pacto de Varsóvia, sua congênere na Europa oriental, unindo países do leste europeu à URSS. A OTAN adquiriu, depois de 1991, a função de organização de defesa da União Europeia com apoio dos Estados Unidos e Canadá. Todos os países do Pacto de Varsóvia passaram a integrar à OTAN. Até mesmo a Albânia, pró-China, e os países que resultaram da dissolução da Iugoslávia, não alinhados à URSS, aderiram à organização militar. Hoje, ela conta com trinta membros Albânia, Alemanha, Bélgica, Bulgária, Canadá, Croácia, Dinamarca, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estados Unidos, Estônia, França, Grécia, Holanda, Hungria, Islândia, Itália, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, Macedônia do Norte, Montenegro, Noruega, Polônia, Portugal, Reino Unido, República Checa, Romênia e Turquia: A União Europeia é formada por Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária, Chipre, Croácia, Dinamarca, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estônia, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Hungria, Irlanda, Itália, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Polônia, Portugal, Reino Unido, República Checa, Romênia e Suécia. Dois a menos que a OTAN. Esses números indicariam que a segurança é mais importante que a economia? Até mesmo países que formavam a União Soviética, passaram a integrar a OTAN, como Estônia, Letônia e Lituânia. Ficaram de fora Belarus, Ucrânia, Moldávia e Geórgia. Penso em duas razões por essa opção entre um capitalismo liberal e um capitalismo autoritário. A primeira é econômica. Parece que o socialismo soviético nunca foi profundo. Tanto a Rússia quanto as nações que a integraram aderiram ao capitalismo liberal em menos de 30 anos. A segunda é política: o medo de sofrer o domínio russo novamente. Os países do Pacto de Varsóvia e as nações do leste europeu integrantes da URSS sentem-se hoje mais ligados à União Europeia do que à Rússia. A Geórgia já sofreu intervenção armada da Rússia. Agora, é a Ucrânia. Este segundo país parece fundamental para a Rússia. Seu ingresso na OTAN e na União Europeia deixariam a Federação Russa cercada pela OTAN.

Putin e Zelenski.

Na guerra de propaganda, a Ucrânia e o Ocidente estão vencendo porque as informações provenientes da Federação Russa são sempre oficiais. A Rússia invadiu a Ucrânia para eliminar o nazismo dominante no país. Sabe-se que existem núcleos reacionários em todos os países do mundo, sejam eles centrais, intermediários e periféricos. Os autoritarismo russo e chinês contêm ingrediente conservador. O argumento de desnazificar a Ucrânia, portanto, não se sustenta. Outro argumento é impedir que  a Ucrânia integre a OTAN e aumente mais ainda o cerco sobre a Rússia. É um argumento cabível. O ingresso da Ucrânia na OTAN e possivelmente na União Europeia seria um estímulo ao ingresso da Finlândia, da Suécia, de Moldávia e da Geórgia no pacto militar, aumentando mais ainda o cerco sobre a Rússia. Por outro lado, a invasão da Ucrânia pela Rússia fortalece mais ainda a OTAN e estimula o ingresso nela de outros países, pois eles passarão mais a temer uma invasão russa, como já ameaçou Putin. Creio que, se não fosse o arsenal nuclear da Rússia, a OTAN já teria entrado na guerra ao lado da Ucrânia, como tanto pede Zelenski.

Na guerra entre Putin e Zelenski, este já venceu. Em suas falas, Zelenski não se  parece com comediante que é nem como neonazista. Ele pode despertar antipatias em alguns com noções preconcebidas. Contudo, seus depoimentos à distância têm arrancado aplausos da OTAN, da União Europeia, do Parlamento Europeu e dos parlamentos de vários países. Até mesmo questões antigas e aparentemente sedimentadas, como o das ilhas Kurilas do Sul, voltaram à tona na fala de Zelenski ao parlamento japonês. A Ucrânia aparece como vítima e Putin como agressor. Zelenski está falando bem e Putin tem um discurso muito oficial. As imagens da guerra chocam. Civis, idosos, crianças e prédios aparecem destruídos. Farsa? Pode existir alguma. Os documentos dirão futuramente. Por enquanto, contam as imagens e as versões.

China.

A China aproximou-se da Rússia antes da guerra da Ucrânia, mas se posiciona de forma quase neutra na ONU. Seu interesse é mais econômico que político. Mas ainda é uma incógnita. Ela ingressará na guerra em apoio à Rússia? Ela assumirá a postura de mediadora na guerra? Ela se aproveitará do conflito para incorporar Taiwan, que considera parte de seu território? O enigma ainda não foi decifrado.

Saída para a Ucrânia.

A Rússia anunciou recentemente que seu objetivo na Ucrânia já foi cumprido. O país tem sido amputado em sua periferia. Primeiro foi a Crimeia, que tem ligações mais com a Rússia do que com a Ucrânia. Depois foi Dombass, no leste do país, onde russos e ucranianos lutam desde 2014, apesar dos Acordos de Minsk. A declaração pode ser uma farsa ou verdadeira. Se verdadeira, pode significar que, de fato, os objetivos da Rússia foram alcançados ou que o país agressor está encontrando dificuldades para continuar a guerra. Por outro lado, Zelenski acena com a promessa de neutralidade da Ucrânia, abdicando das armas da OTAN. O país seria uma nova Suíça. Considere-se que a neutralidade da Suíça não significa abstenção. Ela se posicionou favoravelmente à Ucrânia na presente guerra. A Suíça já foi um país pobre, exportando imigrantes para outros países, inclusive para o Brasil.

Mas agora é um dos mais prósperos e pacíficos países capitalistas. Trata-se de um Estado plurinacional, desmilitarizado e neutro. O país nunca foi invadido por outra nação, mesmo nas duas Guerras Mundiais. É um país perfeito? Depende da visão. Mas certamente é um exemplo de respeito aos direitos humanos, à convivência entre nacionalidade diferentes e à paz mundial. Edgar Morin, grande pensador francês, sugere o caminho suíço para a Ucrânia.

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