Hoje, enquanto cozinhava, fiquei imaginando o que você diria se me visse – com pouca maestria, eu sei – preparando, simultaneamente, dois pratos para o almoço domingo. A cena remete há alguns anos – você no fogão, e eu na pia fingindo fazer alguma coisa. Minha mente ficcional me faz imaginar você agora parada perto da porta, com uma taça de vinho, com cara de incrédula, ensaiando aquela risada contida e, ao mesmo tempo, debochada, como quem diz: “quem te viu e quem te vê”.
Eu ainda não sei cozinhar direito. Apenas estou me virando, desde que passei a morar só, coisa que você vivia dizendo: você precisa aprender a ser só (no sentido independente da palavra). Estou aprendendo também o ponto certo dos pratos, os condimentos para cada receita e também técnicas de congelamento, para não passar aperto. Descobri que gosto mais de supermercado online; evita encontros desagradáveis. A mobília do apartamento foi garimpada; as louças herdadas; e boa parte do enxoval doada. Lembro que você dizia o quanto se pode ser feliz com menos. Coloquei uma rede na sala, de onde vejo o céu, o sol e a chuva, e lembro das vezes que você me convidava para passar o domingo com você. E vamos fazer o que o dia inteiro? eu perguntava, já sabendo a resposta: “Nada! eu quero fazer nada com você!”
Fazer nada junto só é possível com quem se tem muita afinidade. Ficar quieto, sem cobranças, curiosidades sobre o que outro está pensando, o que está sentindo, e tudo mais que buscamos por medo do silêncio. Nossa amizade nunca teve medo do silêncio. Nossa quietude era paz. Com você, amiga, eu podia passar o domingo no mais profundo silêncio, esse mesmo que tanto incomoda as pessoas ao meu redor. Quantos domingos passamos assim, somente com palavras escolhidas, sem ter que expor ou publicar sentimentos para validar a amizade… só entende quem é muito parecido, quem está na mesma frequência… “quem é feita da mesma matéria”.
A chuva desse domingo me trouxe você, nossa afinidade em fazer tantos nadas juntas. Eu sempre quis ter uma amizade assim e a vida me deu você, ainda que por tão pouco tempo. E eu que só sei falar escrevendo, fiz essa carta. Quem sabe ela chegue até você?
* carta para Lia