O dilúvio na zona serrana do Rio de Janeiro

Por Arthur Soffiati

/

20/02/2022

Arthur Soffiati

Intelectual por vocação e ofício, ecólogo militante, pioneiro da área de História Ambiental no país

 

Existem fenômenos climáticos que explicam as intensas chuvas que se precipitam sobre a região Sudeste do Brasil ou que trazem estiagens ingentes. El Niño e La Niña são sempre invocados como os principais responsáveis. Ambos sobre o oceano Pacífico, El Niño acarreta secas e La Niña provoca muitas chuvas. Mas devemos considerar ainda as zonas de convergência. A zona de convergência intertropical transporta água evaporada do Atlântico para a Amazônia, outro fator de extrema importância para as chuvas do Sudeste. Na maior floresta tropical do mundo, agora extremamente ameaçada pelo desmatamento praticado com a aquiescência do governo federal, forma-se nuvens empurradas para oeste. Esbarrando nos Andes, essas nuvens se dirigem para o Centro-Oeste, Sudeste e Sul da América do Sul. São os chamados rios voadores, que transformaram um deserto tão seco quanto o de Atacama em zona verde. É a Mata Atlântica, hoje reduzida a 10% de sua extensão original.

Quando esses rios voadores se estabilizam por alguns dias com zonas frias no mar, forma-se a Zona de Convergência do Atlântico Sul, que tem oscilado entre São Paulo e sul da Bahia, passando pelo Rio de Janeiro, Espírito Santo e Minas Gerais. Mas ela irriga outros estados entre a Amazônia e o Atlântico. Com o aquecimento do planeta, todos esses fenômenos meteorológicos estão se intensificando e se tornando devastadores, com o agravante de nossas cidades, erguidas no tempo em que o clima tinha um comportamento previsível, sem as periferias tão adensadas por conta de uma pobreza cada vez maior da população.

Deslizamento de encosta fragilizada pelo desmatamento e pela ocupação urbana. Petrópolis, fevereiro de 2022

Fogo serra acima, água serra abaixo

Depois do dilúvio que se abateu sobre Friburgo, em 2011, uma foto aérea de Petrópolis enviada por uma pessoa residente em Petrópolis mostrava como a cidade tinha tudo para sofrer um desastre semelhante ao de Friburgo. O núcleo urbano de Petrópolis começou num vale banhado pelo rio Quitandinha. Prédios aristocráticos ladeados por montanhas. Com o tempo, a cidade imperial subiu as serras com casas de classe média e de pobres.

O engenheiro campista Saturnino de Brito formulou um plano de saneamento para a cidade no início do século XX, propondo a manutenção das florestas em topos e encostas de morros e escadas em quedas d’água para diminuir o impacto dos rios encachoeirados. Saturnino de Brito não imaginava que a economia capitalista provocasse mudanças climáticas destruidores nem previa que as cidades cresceriam de forma desordenada por conta do aumento da população e da pobreza.

Por mais de uma vez, ocorreram incêndios nas poucas florestas restantes nas encostas, assim como ocorreram também enchentes destruidoras. Nenhuma superou a do dia 15 de fevereiro de 2022. Pelo menos até agora. Foram 260 milímetros de chuva durante cerca de 6 horas. Bem mais do que costuma chover o mês todo. A topografia da cidade, o desmatamento e a ocupação das encostas favorecem desastres causados por chuvas. As águas correm rápida e descontroladamente pelos declives, provocando deslizamentos, arrastando casas, veículos, móveis e pessoas. As imagens mostraram verdadeiras corredeiras volumosas pelas ruas. Não só os pobres foram vitimados por elas. Casas da classe média, lojas comerciais e prédios históricos foram seriamente danificados.

Ainda não foi possível avaliar o número de vítimas e os prejuízos. Mas pode-se concluir que não bastam o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (CEMADEN), os sistemas de alerta instalados nas cidades e a defesa civil. Mesmo que os avisos de perigos climáticos sejam emitidos pelo órgão, mesmo que as cidades possam avisar os moradores quando aos perigos e mesmo que a defesa civil possa socorrer as pessoas, as cidades não aguentam o tranco, como demonstraram Friburgo, Petrópolis e Teresópolis.

Insiste-se mais uma vez na necessidade de promover mudanças nas cidades para que elas não sejam muito afetadas pelas mudanças climáticas, já que tais mudanças não serão revertidas. Pelo contrário, devem se acentuar. Para adaptar as cidades ao novo normal do clima, é preciso começar agora. Em vez de refazer os estragos e esperar nova destruição no ano seguinte, cabe iniciar a mudança. Algo que só será perceptível em dez anos pelo menos. Mas, certamente, tais mudanças não ocorrerão face aos interesses econômicos e políticos. Continuaremos assistindo, pois, a novos desastres, cada vez mais destruidores.

A Petrópolis pobre desaba sobre a Petrópolis rica

Petrópolis em dia de Friburgo

Em 2011, a zona serrana do Rio de Janeiro foi castigada por colossais chuvas. Friburgo, Teresópolis e Petrópolis foram atingidos por elas, mas nenhuma cidade foi tão destruída quanto Friburgo. Neste fevereiro de 2022, foi a vez de Petrópolis. As precipitações foram estimadas em 260 milímetros em seis hora. Até o momento, foram contabilizados quase cem mortos. Novas vítimas ainda vão aparecer.

As ruas da cidade se transformaram em verdadeiros afluentes do rio Quitandinha, que transbordou com tanta água. Parte dela se acumulou nas áreas baixas. Outra parte chegará ao rio Paraíba do Sul pelo rio Piabanha. Outra ainda será evaporada. No meio do caminho, muita destruição material em bairros pobres e ricos, muita lama e muita morte. O que considero muito capcioso por parte das autoridades e da imprensa é dizer que essas chuvas foram as mais abundantes desde 1932. Os pesquisadores, recorrendo a jornais e a outros documentos, não informam sobre chuva mais volumosa que a do dia 15 de fevereiro. É preciso deixar claro nas falas e nos textos que as medições de precipitações pluviométricas começaram a ser feitas em 1932 e que nesses 90 anos, nenhuma superou a que se abateu sobre a cidade no dia 15 de fevereiro de 2022.

Sempre que chove muito, e já choveu muito no sul da Bahia, em Minas Gerais, no Espírito Santo, no Rio de Janeiro e em São Paulo nesse verão de 2021-22, a primeira medida dos governantes é fazer um sobrevoo de helicóptero sobre a área atingida e anunciar ajuda financeira. Quando o momento crítico passa, não se sabe se o dinheiro saiu e chegou ao destino. Geralmente não chega e, se chega, é desviado para outros fins. Habitualmente para o bolso de empresários e políticos. O pouco que resta é empregado na reconstrução da cidade como ela era. Até o próximo desastre.

Os estados e as prefeituras acionam o corpo de bombeiros e a defesa civil. A população se solidariza com as vítimas, recolhendo alimentos, água, agasalhos, participando das buscas como voluntários. A imprensa acompanha tudo de forma até cansativa e repetitiva, mostrando a destruição de bens materiais e a busca por sobreviventes. Bastaria o básico em termos de informação. O excesso leva às pessoas a se desinteressarem pelas catástrofes, pois as cenas trágicas se assemelham.

Poucos especialistas são consultados para opinar sobre as causas das chuvas e as alternativas para enfrentá-las. Sinto muito falta de um programa nacional de adaptação do país às mudanças climáticas. Um programa que seria conduzido por um órgão público e traduzido em projetos para cada local formulados por equipe multidisciplinar, pois a realidade de Petrópolis não é a mesma de Miraí, de Franco da Rocha e de Colatina. Mas nada será feito. Se for, vai se transformar em simulacro.

A força das águas

Destruição de cidade pobre atinge cidade rica

D. Pedro II gostou do lugar e decidiu erguer uma cidade europeia nas proximidades do Rio de Janeiro, capital do Império. Já existia uma economia de mercado sem os disfarces atuais. “Sim, escravizamos pessoas negras porque elas são inferiores e nasceram para trabalhar para os superiores brancos. Sim, nós destruímos a natureza porque Deus a criou para nós a explorarmos. Além do mais, ela é infinita.”

A bucólica cidade imperial parecia um refúgio europeu para o descanso da alma gentil e culta do imperador. Mas tudo isso passou. Veio a República. A cidade do Rio de Janeiro se expandiu e engolfou Petrópolis, que passou a ser uma cidade dormitório. É claro que a especulação imobiliária rapidamente percebeu a oportunidade de ganhar dinheiro nos terrenos nobres. Engenheiros e arquitetos foram empregados para assinar projetos para a indústria de construção civil. Esses profissionais precisam rever sua responsabilidade em criar cidades teratogênicas.

Pessoas pobres também encontraram no entorno de Petrópolis lugar para morar de forma mais barata perto de seus trabalhos, seja na própria cidade imperial, seja no grande Rio de Janeiro. E aqui, a ironia fica patente. O rico não mora em área de risco mas atrai o pobre, que só encontra espaço em áreas perigosas de encosta desprotegida de florestas. O sociólogo humanista em excesso está se tornando uma figura em extinção ao não reconhecer áreas de risco. A cidade deve ser entendida como um todo. Ninguém está seguro em construções sólidas erguidas em áreas protegidas se existem pessoas vivendo em áreas de risco. Ainda mais com mudanças climáticas que produzem fenômenos extremos. A enxurrada arrasta casas pobres e atinge residências ricas.

As mudanças climáticas estão ensinando muito a governantes, empresários, ricos, remediados e pobres. Mas as lições não estão sendo devidamente aprendidas. Soluções velhas estão sendo dadas a problemas novos. Vinho novo em odres velhos. Como as mudanças climáticas tendem a se intensificar, precisaremos repensar os núcleos urbanos, instalando áreas de contenção, sistemas de fluxo, áreas de escape etc. Principalmente,

distribuição de renda, algo que não se pode mais adiar. Mas, pelo visto, as soluções adotadas continuarão sendo paliativas.

plugins premium WordPress