O cotidiano das mudanças climáticas (final)

Por Arthur Soffiati

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08/08/2022

Arthur Soffiati

Intelectual por vocação e ofício, ecólogo militante, pioneiro da área de História Ambiental no país

Verão de 2022 no hemisfério norte

Mais um verão de temperaturas recordes chega ao hemisfério norte, mas estamos envolvidos demais com a guerra na Ucrânia e agora também com Taiwan, com os preços dos combustíveis fósseis e com o avanço de forças antidemocráticas para aquilatar devidamente a guerra que estamos travamos contra a natureza há séculos e que, inevitavelmente, perderemos.

Mas encontro dificuldades para obter informações a seu respeito. Os jornais continuam sendo nacionais, quando muito, num mundo globalizado. Eles, os jornais, entendem ainda que os acontecimentos locais não têm conexões com o global. Nosso espírito ainda é paroquial e nacional. Fica difícil pensar no mundo.

Para uma avaliação equilibrada dos recordes de temperatura no hemisfério norte, seria necessário ler jornais de cada país afetado, pois não contamos ainda com um jornal da globalização. Se leio um jornal português, tenho a impressão de que só Portugal está ameaçado por uma onda de incêndios. Que o grande fogo de Pedrogão, em 2017, pode se repetir em todo o país. Se leio um jornal da Galícia, parece que só o território galego está ameaçado. Se leio um jornal do oeste norte-americano, parece que só a Califórnia pega fogo.

A Europa está cada vez mais quente, sobretudo na orla do Mediterrâneo. Ventos quentes e secos estão ressecando as penínsulas do sul europeu. Ao lado dessas altas temperaturas secas, os rios estão barrados e perdendo vazão, as florestas estão cada vez mais escassas. A umidade do solo está se reduzindo a cada ano, a despeito de chuvas torrenciais. Os animais silvestres e domésticos sofrem estresse. O abastecimento público de água está comprometido. É muita demanda sobre os rios. Eles não atendem mais às necessidades crescentes.

É uma guerra? Sim, é uma guerra, mas a maioria dos habitantes, os empresários e os governos continuam agindo só nos momentos críticos. Alguns até podem pensar que o problema é estrutural e exige transformações profundas, mas continuamos apenas a apagar incêndios, agravando progressivamente a crise ambiental global da nossa época – o Holoceno.

Numa avaliação que tenta ser equilibrada, o mundo está melhor e pior do que há cem anos. Por um lado, a tecnologia e a medicina (só tomando dois exemplos) alcançaram patamares notáveis e vão continuar avançando. Por outro lado, a população mundial chegou a oito bilhões de habitantes. Não se trata de ser malthusiano, mas o crescimento se opera mais para o lado da pobreza e da miséria que para o lado da riqueza. A área florestal do mundo é menor. A diversidade biológica está mais pobre. A poluição generalizou-se. Os alimentos estão contaminados e mal distribuídos. O mundo está mais vulnerável a pandemias. As cidades se conurbaram e tendem a se transformar numa ecumenópolis. O mar foi transformado num caldo de plástico e está mais ácido. As temperaturas estão mais altas. As mudanças climáticas se traduzem em chuvas torrenciais ou em estiagens ingentes.

A humanidade não deve se extinguir, mas viverá um tempo de angústia severa. Enquanto isso, o fogo ameaça o hemisfério norte, no verão, e o hemisfério sul, no inverno.

Drama ambiental

O palco do drama é o mundo todo. É esse planeta formado por oceanos e continentes tão desconhecido por nós humanos, mesmo a respeito do solo que temos sob os pés. Mas reduzamos esse imenso espaço à orla do mar Mediterrâneo, que já está ardendo em chamas no verão de 2022. O fogo está novamente castigando a Grécia e a Península Ibérica, chegando até a França. Lancemos nosso foco sobre a Península Ibérica, onde os rios não podem ser grandes porque o território é exíguo e barrado pela cadeia montanhosa dos Pirineus, que impede rios nascidos na França de entrarem na península e rios nascidos nela de desembocarem fora dela. O maior rio é o Tejo, com 1007 km de extensão, pouco menor que o Paraíba do Sul, com 1.137 km. Os maiores rios nascem na Espanha e desembocam em Portugal. Os que nascem em Portugal e desembocam no território do mesmo país são pequenos. Todos ou quase todos estão barrados para abastecimento de água e para geração de energia elétrica.

Limitemos mais ainda o palco. Tomemos o centro de Portugal num polígono delimitado pelos núcleos urbanos de Leiria, Pombal, Ansião, Pedrogão, Alvaiázere e Ourém, estendendo uma linha que parte desse polígono em direção às barragens de Castelo-de-Bode, no rio Zêzere, de Pracana, no rio Ocreza, ambos afluentes do Tejo e, neste, a barragem de Fratel. O Zêzere conta com 214 km de extensão e regula com o rio Itabapoana, com 250 km. O Ocreza tem 64.207 km. É menor que o rio Carangola, que tem 130 km. No leito dos três rios ibéricos, as barragens são assustadoras. Elas formam lagoas enormes. Logo abaixo das barragens, os rios são filetes de água. O Tejo já mostra o fundo do seu leito em tempos de estiagem.

Nesse palco, os incêndios do verão de 2022 estão causando estragos só superados pelos incêndios de 2017. E o verão ainda não acabou. Agora, o fogo sai do polígono e assola o norte do pais, como também a Espanha em todo seu território. A Galícia, nacionalidade associada à Espanha, também sofre com as altas temperaturas e os incêndios. Mexeu-se tanto na natureza que o solo está se ressecando progressivamente. Parece que o deserto do Saara, além de se estender para o sul da África, avança sobre o mar Mediterrâneo e alcança o sul da Europa. Os rios estão desregulados. A água se concentra antes das barragens e escasseia depois delas. As florestas foram reduzidas com o avanço dos campos de cultivo e de pastagens. Elas também foram invadidas ou substituídas por espécies exóticas, como o eucalipto, por exemplo. As folhas dessa árvore australiana caem, secam, acumulam-se no chão e ardem facilmente diante de um fósforo.

Não se pense que os europeus cuidam muito bem do ambiente. Sobretudo no sul do continente. Eles não têm mais florestas para derrubar e queimar, como no Brasil. Tratam

melhor do ambiente que os governantes dos países americanos, mas continuam tratando a crise ambiental, que já atingiu proporções estruturais, como se ela fosse apenas episódica. Estão empurrando com a barriga, como afirmou Helena Freitas, professora na área de Biodiversidade e Ecologia da Universidade de Coimbra.

Do Campelo ao Pó

A lagoa do Campelo situa-se inteiramente dentro da maior restinga do estado do Rio de Janeiro, tendo ligação com o Rio Paraíba do Sul e com antigos córregos de tabuleiros. Ela sofreu fortes intervenções de obras de drenagem, além de intenso desmatamento de suas margens. Hoje, liga-se também ao rio Guaxindiba pelo canal Engenheiro Antonio Resende, totalmente aberto por ação humana.

Ela passou por vários episódios de seca, mas o de 2014-15 parece ter sido o mais intenso. A estiagem de dois anos que atingiu a região Sudeste do Brasil secou a lagoa. Seu fundo ficou todo rachado. Só no centro dela, na parte mais funda, restaram pequenas poças d’água. Os impactos à flora e à fauna foram incalculáveis, assim como à atividade pesqueira.

Especialistas vaticinaram que ela não mais se recuperaria daquela inclemente crise hídrica. Em 2016, com a temporada de chuvas, ela se recuperou, assim como o rio Doce. Não nas condições anteriores às agressivas intervenções humanas que ambos e outros mais sofreram ao longo de décadas. Mas se recuperaram.

Recebo a informação, em 2022, de que o rio Pó, cujo curso no norte da Itália, de oeste para leste, tem 625 quilômetros, perdeu 70% de sua vazão com a rigorosa crise hídrica que assola a Europa. De resto, ela assola também todos os continentes. Por que um brasileiro se interessa por um rio distante, menor que o Paraíba do Sul? Porque não sou mais brasileiro, e sim terráqueo. Todos os rios e lagoas do mundo me interessam, do humilde e mutilado córrego de Itaoca, no Espírito Santo, ao descomunal rio Amazonas. Todos eles enriquecem nosso lar e sofrem agressões humanas.

Cientistas diagnosticam que o rio Pó deve morrer. Não há mais geleiras suficientes nos Alpes para abastecê-lo. Entendo que a avaliação é precipitada. Ele deve se recuperar com as próximas chuvas. Porém, sua tendência é mesmo declinar. Mesmo se recuperando, como a lagoa do Campelo, ele tende a definhar progressivamente.

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