Mais uma vez, o clima dá sinais de que alguma coisa está fora de ordem. No hemisfério norte, é primavera. No sul, é outono no mês de maio. Vários alertas foram dados em ambos os hemisférios, com alguns recordes desde que as temperaturas começaram a ser registradas.
Depois da seca, a enchente
Muito antes de os portugueses chegarem a terras que futuramente receberia o nome de Brasil, o rio Tubarão já existia. Os nativos lhe deram um nome. Aliás, o mais humilde riacho merecia deles um nome. Mas, os portugueses ergueram cidades em sua bacia. Tubarão e Laguna são bem conhecidas. Então, hoje, como os rios não têm mais importância, a imprensa se dirige a eles como o rio que passa em Tubarão ou a esse rio que transborda. Antes, era a cidade que se erguia ás margens dos rios. Agora, parece que os rios desviam seus cursos para passar pelas cidades.
O sul do Brasil passou por intensa seca durante o verão de 2021-22. A responsabilidade foi atribuída a La Niña, que provoca seca no sul e fortes chuvas no sudeste, centro-oeste, nordeste e norte. Certo. Mas deve-se observar que as mudanças climáticas provocadas pela humanidade agindo coletivamente têm potencializado fenômenos meteorológicos.
“Vamos pedir a São Pedro para mandar chuva para o sul e parar de chover em outras regiões do Brasil. As secas causam grande prejuízo ao agronegócio, que exporta sua produção e encarece os preços ao brasileiros. As chuvas destroem tudo. Vejam o sul da Bahia, Petrópolis e Angra dos Reis. Elas causam prejuízos a todos. O agronegócio aumenta os preços e o pobre sofre”.
São Pedro responde que não tem nada a ver com isso. O problema é nosso. A seca do sul termina com um ciclone subtropical que causou muitas chuvas em Santa Catarina. Os rios transbordaram e destruíram. As encostas deslizaram e levaram casas de pobres, como costuma acontecer. O rio Tubarão deu um violenta mordida na cidade do mesmo nome. A bacia do Itajaí também foi atingida, assim como a grande Florianópolis.
Quem olha Tubarão num mapa percebe logo que a cidade avançou sobre o rio. Agora, com chuvas torrenciais, ele avança sobre a cidade. Já assisti a esse filme várias vezes. E novos filmes como esse estão sendo produzidos. É um filão tão promissor como os dos heróis da Marvel.
Visão aérea de enchente de Tubarão em maio de 2022
Alagamentos
Nas grandes cidades, as chuvas podem causar mais estragos que nas pequenas. Costumeiramente, elas se erguem junto a rios, Até o século XIX, esses rios eram mais respeitados que atualmente. Como não havia ruas e estradas calçadas com paralelepípedos e asfalto, como ainda não havia ferrovias nem aviões, os rios eram estradas líquidas por onde circulavam canoas, vapores de médio calado e até navios de grande porte. Havia acumulação de água com as chuvas e transbordamentos? Havia, mas não como atualmente. Voltemos a “Nordeste”, livro de Gilberto Freyre sobre a importância dos rios para as cidades no século XIX. Voltemos às imagens de Victor Frond sobre o rio Paraíba do Sul no século XIX, com suas embarcações que transportavam cargas e passageiros entre Atafona (entrando no mar, se necessário) e São Fidélis, podendo chegar a Cachoeira do Muriaé (Cardoso Moreira). As casas tinham então suas frentes voltadas para os rios.
Mas esse tempo passou. Os rios foram substituídos pelos trens, automóveis, ônibus, aviões. As casas viraram as costas para eles e passaram a lançar em suas águas o que o corpo humano expele do consumo, tanto líquido quanto sólido. As embalagens dos alimentos que o ser humano consome. Não apenas. Também móveis, pneus, geladeiras e outras bugingangas. De vias de acesso, os rios passaram a ser valas de esgoto e depósitos de lixo a céu aberto. Muitos foram cobertos e escondidos sob as cidades e suas ruas.
Hoje, cidades que cresceram sobre encostas protegidas por florestas ou sobre planícies alagáveis sofrem muito com chuvas. Sobretudo com as chuvas volumosas derivadas das mudanças climáticas. Sua expansão para essas áreas revelam as desigualdades sociais. Os ricos moram em lugares seguros. Os pobres habitam lugares vulneráveis. Mas as mudanças climáticas começam a atingir também os ricos. A água de chuvas abundantes alaga áreas baixas e impermeabilizadas. Se rios abertos ou cobertos transbordam, essas áreas também ficam alagadas. No Rio de Janeiro, os alagamentos são muito comuns. Os rios cobertos são hoje, em sua maioria, ruas. As chuvas que caem nos trechos altos dos rios, ainda descobertos, entram na parte coberta e forçam a cobertura. A água acaba saindo pelos bueiros urbanos, ralos e vasos sanitários. A água reflui. Os rios e canais descobertos, transformados em vala de esgoto, transbordam e invadem as ruas. O escoamento demora, e as pessoas sofrem as consequências da água empoçada.
É mais comum alagamentos por chuvas, ou seja, por água que cai do céu. Mas pode haver também alagamento por água que transborda dos rios. As chuvas engrossam os rios e esses transbordam alagando as cidades.
Alagamento em Alfredo Chaves, Espírito Santo
Mundo em mudança
Não há muita novidade no último informe do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), da ONU. Existe uma luta dentro da economia de mercado entre as forças que causam mudanças climáticas e as forças que desejam um novo mundo ou a salvação da própria economia de mercado. A esta altura, parece remoto o projeto de primeiro mudar o sistema para depois mudar as relações agressivas da humanidade com a natureza. O grande esforço do piloto capitalista é desviar a tempo o Titanik do iceberg. O centro dessa luta continua sendo as mudanças climáticas, mas elas só não bastam. É preciso controlar as forças que estão destruindo as florestas, sobretudo as tropicais, sobretudo as da América do Sul, sobretudo as do Brasil, sobretudo a amazônica, ainda a maior e mais importante do mundo. Ela é fundamental para a absorção e estocagem de carbono, ao mesmo tempo produzindo oxigênio. É preciso cuidar dos oceanos com grande atenção, pois eles também absorvem carbono e produzem oxigênio. No entanto, sua capacidade de absorver gás carbônico está no limite. Eles estão ficando acidificados. A prova mais imediata é a morte dos bancos de coral. Também o derretimento de geleiras, sobretudo nos polos, ocasionando a elevação do nível do mar e tempestades marinhas. O aquecimento dilata o líquido e ajuda a elevar mais ainda os níveis. Ele também recebe muito esgoto e lixo, sobretudo o plástico. Por outro lado, a biodiversidade marinha está se empobrecendo com a sobrepesca e com a poluição. Nos continentes, a biodiversidade também se empobrece. A ciência já conhece bastante a sua importância para a vida humana, mas ainda precisa conhecer mais. Com a extinção de espécies, as relações ecológicas se interrompem e podem acarretar desequilíbrios prejudiciais à humanidade. Não podemos esquecer o que está acontecendo com a água doce, fundamental para a vida no planeta, inclusive a nossa. Os rios estão represados. As cidades estão exigindo cada vez mais água. Esta sofre grave poluição e todo tipo de atentado: barramentos, transposições e empobrecimento da vida.
Quanto ao clima, estamos assistindo aos efeitos das mudanças. As temperaturas batem recordes para mais ou para menos. As chuvas são devastadoras. As atividades rurais estão sofrendo com elas. Não há mais dúvida de que elas comprometem os lucros, algo tão claro ao mercado. As cidades também são destruídas. Pessoas morrem. As secas, em sentido contrário, causam o mesmo efeito sobre a economia. Assim também o calor e o frio. A metáfora do Titanik ilustra bem a crise ambiental de nosso tempo. Se ela fosse natural,
talvez não pudéssemos fazer nada. Se o Sol se expandisse e esquentasse a Terra, seríamos impotentes para contê-lo. Mas podemos nos desviar do iceberg. Acontece que não estamos acreditando que existe perigo na frente do transatlântico. Os que acreditam, acham que o iceberg não é perigoso. Os que veem perigo nele são poucos e não conseguem convencer os incrédulos e duvidantes. Vamos nos chocar com o grande bloco de gelo ou desviaremos dele a tempo? Quem viver verá.
Derretimento de geleira pelas mudanças climáticas
Calor para o sul e frio para o norte
Um dos argumentos dos negacionistas sobre o aquecimento global é o frio intenso fora ou dentro de hora. Recentemente, um negacionista me arguiu: “Como você pode falar em aquecimento global com um frio desses?” A liberação de gases do efeito-estufa por atividades humanas numa economia de mercado (as outras economias nunca conseguiram tal façanha) tornam mais espessa a camada de gases que circunda a Terra. Essa camada é necessária para segurar calor, vital para o equilíbrio ambiental do planeta. Ela corresponde a um lençol que usamos para nos proteger durante o verão. Esse lençol não esquenta nosso corpo. Mas se colocarmos sobre ele uma colcha, a temperatura começa a subir. Se sobre ela colocarmos um cobertor, começaremos a transpirar. Um edredon sobre tudo provoca um super aquecimento.
O acúmulo de gases na atmosfera corresponde a essa superposição de agasalhos. A Terra está mais quente do que há 50 anos. E essa temperatura crescente provoca alterações profundas no clima: as temperaturas altas se tornam mais altas durante a primavera-verão e mais baixas durante outono-inverno. Aprendi com o próprio corpo que o verão, na zona tropical, acabava em maio, enquanto sensação térmica. O inverno, que era ausência de verão, começava em junho. O ciclone extratropical atípico, batizado de Yakekan (em tupi-guarani, “som do céu”) está aí para provar a existência de mudanças climáticas (expressão mais elucidativa que aquecimento global).
Massas de ar quente dos trópicos estão invadindo as regiões polares e empurrando maças de ar frio para a zona intertropical. Os polos estão esquentando, as geleiras estão derretendo, o calor está mais forte durante a primavera-verão e o frio está mais intenso durante o outono-inverno. Essa troca de massas atmosféricas baixou as temperaturas na América do Sul. As ondas de frio estão subindo, assim como a zona de convergência do
Atlântico sul. A partir de 1961, quando os registros começaram a ser feitos na América do Sul, o frio bateu recordes em São Paulo, Minas Gerais, Brasília e outros lugares. É preciso deixar claro que não se sabe de recordes de frio antes de 1961, como costuma informar a imprensa.
Junto com a massa fria vêm os ventos fortes que agitam o mar e provocam ressacas. Vêm a neve e a geada. As pessoas sofrem. Velhos e pobres correm risco de vida e alguns morrem por hipotermia. As lavouras são atingidas. Os prejuízos elevam os preços e cria-se um círculo vicioso que se transforma num espiral descendente. As massas frias invadem a zona tropical e os efeitos se fazem sentir nos supermercados.
Frio na serra gaúcha
Depois do verão e antes do inverno
Terminou o verão e ainda não começou o inverno no hemisfério sul. Terminou o inverno e ainda não começou o verão no hemisfério norte. Estamos no fim de maio, um mês de transição entre estações fortes, mas essas estações já chegaram com tudo. No hemisfério sul, as temperaturas baixas bateram recordes após 1961. Não que tenham ocorrido temperaturas mais baixas que as atuais antes desse ano. É que os registros começaram a ser feitos em 1961. Não chegamos ainda no inverno, mas o inverno chegou na serra gaúcha e catarinense, com frio, geada e neve. O frio chegou ao Centro Oeste, a Minas Gerais, a São Paulo e até ao sul da Bahia. As mudanças climáticas estão deslocando massas de ar quente para o polo sul, que já registrou temperaturas altas. Por sua vez massas de ar frio sobem da região polar e esfriam o cone sul da América do Sul. Com elas, vêm ventos fortes e ressacas.
Na Índia e Nepal, fenômenos climáticos intenso ocorrerem sucessivamente com incrível rapidez. Primeiro, uma forte seca assolou o subcontinente com altíssimas ondas de calor. Houve perda na produção de trigo. Lembremos que a Índia é o segundo produtor mundial desse cereal. Logo em seguida, chuvas volumosas produziram enormes enchentes. As monções chegaram antes da temporada e com mais vigor. Mortes e prejuízos nos dois casos.
Enchente na Índia, maio de 2022
“No país das Amazonas” documentário brasileiro de 1922, os rios da Amazônia apresentavam regularidade nas vazantes e nas enchentes. Esse tempo se foi. Agora, a amplitude fluvial varia extremamente. Nas estiagens, os rios apresentam níveis baixos. Nas enchentes, os níveis se aproximam ou ultrapassam a cota de inundação severa, ou seja, 29 metros.
A Europa enfrentou altas temperaturas nessa primavera que já se encerra. Esse calor atípico deriva do choque de massas de ar frio do círculo polar ártico com massas de ar quente do Saara. Essa colisão provocou fortes ventos na Alemanha com mortes, destruição de bens materiais e corte de energia. Um forte tornado também varreu os Estados Unidos, inaugurando a temporada de tempestades de vento.
Enchente em Eirunepé, Amazonas, maio de 2022
Continuo esperado nos jornais uma página, ou meia que seja, dedicada a questões ambientais. Uma espécie de diário da crise ambiental do nosso tempo, mas não apenas com registro. Um espaço dedicado a problemas ambientais no mundo todo, pois nosso país agora é a Terra. Um espaço dedicado a relações entre os fenômenos, mais formativo que informativo.