No final do século XVIII e durante todo o século XIX, duas concepções de floresta se desenvolveram no Brasil, como mostra José Augusto Pádua (Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no Brasil escravista (1786-1888). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002). A dominante entendia que o desmatamento para dar lugar a cultivos representava o progresso, a civilização. A segunda, representada por José Bonifácio de Andrada e Silva e por Joaquim Nabuco, defendia o uso racional das florestas, considerando a sua importância para a conservação de água e da fertilidade do solo. A prática que prevalecia, contudo, era bastante pragmática: derrubar florestas para plantar e criar animais.
A devastação da Mata Atlântica, sobretudo pelo fogo, lançou muito gás carbônico na atmosfera, antes mesmo da queima de carvão mineral e de petróleo pela Revolução Industrial. Onde a influência europeia chegava, a ideia de progresso conflitava com a proteção da natureza, embora vozes em sua defesa já pronunciassem. Mas ainda eram tímidas. Não tinham a sonoridade atual. O argumento de que a Europa destruiu suas florestas para justificar o desmatamento da Amazônia é anacrônico, pois aceitava-se o desmatamento como sinônimo de progresso no século XIX e em parte do século XX. Hoje não se aceita mais.
A Mata Atlântica foi reduzida a 10% de sua superfície original. O solo ficou desprotegido. A erosão provocada por chuvas e ventos assoreou os rios. Suas margens foram urbanizadas. Os núcleos urbanos costumam erguer-se às margens de rios a fim de obter água para o consumo e para contar com um local para despejo de esgoto. Os rios sempre correm em terreno mais baixo que as margens. Portanto, com chuvas abundantes, as cheias aumentam os leitos, que não estão mais protegidos por matas ciliares. As margens costumam ser ocupadas por moradias pobres por falta de terrenos em áreas seguras. No geral, as cidades costumam se erguer em vales, formando obstáculos para o fluxo dos rios e das águas pluviais. Daí as enchentes anuais.
Mas agora existe um agravante: as mudanças climáticas intensificam fenômenos como El Niño, La Niña, zonas de alta e de baixa pressão, zonas de convergência, furacões, tornados, tufões, estiagens, temperaturas altas e baixas. Foi o que aconteceu no sul da Bahia em dezembro de 2021. Umidade conduzida da Amazônia combinada com umidade do mar provocou chuvas volumosas sem precedentes que se precipitaram em solo desprovido de florestas e altamente urbanizado. Formou-se uma Zona de Convergência do Atlântico Sul atípica, pois as ZCAS costumam se estabilizar sobre o Sudeste do Brasil.
Enchente no sul da Bahia
Como o clima não distingue países, estados e municípios, a zona de convergência atingiu também o sul do Pará e do Maranhão, Tocantins, norte de Goiás, Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro, já que a zona de convergência foi descendo. Tende agora a se fixar no Sudeste. A devastação foi assustadora. As cidades foram destruídas como se tivessem sofrido bombardeios de guerra. Cerca de um milhão de pessoas tiveram de abandonar suas casas. A perda de safras causou muitos prejuízos.
Mas a ficha parece não ter caído para a população, a imprensa, empresários e governantes. As catástrofes naturais e provocadas por ação humana (com a ressalva de que as naturais já contam com forte componente humano) sempre foram ocasiões para o exercício da caridade. Pessoas ajudam, doações são feitas por indivíduos, associações, igrejas, empresas, governos nacionais e mesmo estrangeiros. Presidentes, ministros e governadores fazem sobrevoo nas áreas afetadas. É também o momento de desviar recursos para os bolsões de espertalhões. Reconstruções são promovidas para que outros dilúvios destruam tudo novamente, como se observa em Belo Horizonte. A imprensa valoriza depoimentos dos atingidos. A palavra de especialista é logo esquecida.
Enchente em Belo Horizonte
Até aqui, estamos calcados em eventos para demonstrar o que aconteceu e o que acontece, buscando uma análise mais consistente do que as apresentadas pelo discurso popular, governamental e jornalístico. Mas o historiador também tem o direito de examinar tendências. Como cidadão detentor de um saber, fazer previsões se torna uma obrigação pública. É preciso repensar a relação da humanidade com a natureza num mundo ocidentalizado pelo ocidente. É preciso repensar as cidades. Urbanistas, engenheiros e arquitetos devem abandonar seus projetos pessoais megalomaníacos e divisar a cidade como um todo. Sobre um solo devastado e geralmente às margens ou sobre rios capeados, existe muita pedra, cimento, asfalto e metais. É preciso promover a distribuição de renda e implementar políticas de habitação popular de cunho social legítimo. Criar áreas de escape, vias de escoamento e até dutos para transferência de excesso de água de áreas de cheia para áreas de escassez. Choveu muito na área examinada, nas não nas áreas dos grandes reservatórios e no sul do Brasil. Não tem cabimento, diante de tudo a que assistimos, deixar por conta dos prefeitos a demarcação de faixas de proteção em margens de rios. A especulação imobiliária saúda agradecida tal mudança num Código Florestal deficiente. Pensar em construções fora de vales, de áreas de inundação, de encostas desprotegidas e até mesmo na forma de palafitas. Principalmente, diante de um desastre climático local, nunca perder de vista fenômenos da mesma natural no global. Parece que as mudanças climáticas não vão arrefecer. Depois de 26 conferências globais, o aquecimento global continua crescendo.
Seca no Rio Grande do Sul
Neste pequeno e despretensioso escrito, procurei demonstrar meu enfoque de história ambiental. Meu principal documentos é a paisagem. Consulto-a ao vivo, procurando lê-la, ouvi-la, cheirá-la, apalpá-la, prová-la em busca de informações. Para estudar suas mudanças através do tempo, recorro a mapas, desenhos e fotos deixados por cartógrafos, viajantes e fotógrafos que a conheceram no passado. Valho-me também de outros documentos, principalmente de descrições.
No caso das paisagens baianas afetadas pela colossal enchente de dezembro de 2021, recorro à minha experiência com a área em que predominou a Mata Atlântica perto de mim. As florestas contidas no Parque Estadual do Desengano, na serra do Imbé (nome local da Serra do Mar), a floresta estacional semidecidual protegida pela Estação Ecológica Estadual de Guaxindiba e as áreas desmatadas fornecem-me essa experiência. Os rios da região que estudo também apresentam configuração semelhante aos rios da Bahia, de Minas Gerais e do Espírito Santo.
Levo em conta que já estive uma vez em Itabuna e Ilhéus, no vale do rio Canavieira. Estive uma vez em Canaviera, além de duas vezes em Ipiaú, no vale do rio de Contas. Foram paisagens familiares para mim. Mais ao norte, conheci Salvador, a ilha de Itaparica e Maragojipe, na baía de Todos os Santos. Vivi quatro meses em Minas Gerais percorri a pé a costa do Espírito Santo entre os rios Perocão e Itabapoana. Fui ao Pará quatro vezes e uma vez ao Maranhão e a Tocantins.
Procurei situar os autores consultados em sua época. Não condenei o desmatamento da Mata Atlântica por entender que quase todos a consideravam um ambiente selvagem a ser civilizado com os povos que a habitavam. Ao abordar o desmatamento dos remanescentes desse bioma e a devastação sofrida pela Amazônia, minha atitude é também atual, reconhecendo que nosso conhecimento hoje mostra a importância das florestas tropicais para o equilíbrio do planeta quanto à biodiversidade e a retenção de CO2 e a produção de oxigênio. Quem defende o desmatamento atualmente é que está fora de época.
Até aqui, baseei-me em eventos ocorridos e que estão em curso. Mas o historiador que trabalha com a contemporaneidade pode examinar tendências. Pode concluir que as relações da humanidade com a natureza atualmente são altamente temerárias. Pode sugerir a recomposição de florestas em áreas críticas. Pode entender que as cidades não estão em consonância com as mudanças climáticas. Pode, enfim, concluir que as tentativas de reduzir as emissões causadoras do efeito estufa têm fracassado e que, mesmo cessando tais emissões, os fenômenos climáticos extremos continuarão por bastante tempo ainda. As copiosas chuvas não devem ser vistas como fenômeno isolado. Para melhor entendê-lo e explicá-lo,
deve-se estar atento para fenômenos climáticos extremos na América do Norte, na Europa, na Ásia e na África.