Desconforto com o Dia do Índio

Por Arthur Soffiati

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19/04/2021

Arthur Soffiati

Intelectual por vocação e ofício, ecólogo militante, pioneiro da área de História Ambiental no país

Anualmente, em 19 de abril, festeja-se no Brasil o Dia do Índio. No meu tempo de estudante, no primário, os festejos beiravam o patético e o ridículo. Os professores caracterizavam os alunos de índios, pintando-lhes o rosto e vestindo-os de tanga. Não sei se esse oba-oba ainda é praticado. Acho que sim. Pelo menos, hoje, discute-se, em sala de aula, a situação do índio. Mas, do lado de fora, etnias indígenas continuam 1- sendo exterminadas; 2- fugindo da globalização ocidental; 3- sendo aculturadas nas condições sociais mais aviltantes. Além desse quadro dramático, outras questões sobre os índios me incomodam.

1- Índio ou originário. Ainda não ficou definido com clareza se o termo índio deriva de Índia ou de indígena. Cristóvão Colombo teria chamado os habitantes que ele encontrou na América de índios por julgar que havia alcançado as Índias orientais. Poderia derivar de indígena em oposição a alienígena, ou seja, o indígena seria nativo da América e o alienígena seria o europeu, proveniente de outro continente. No cinema, os alienígenas costumam vir de outro planeta, mas a humanidade não é chamada de indígena e sim de terráquea. O termo está carregado de preconceito, embora pareça inocente.

Num esforço de ser politicamente correto, propõe-se chamar os povos indígenas de originários. Parece uma proposta equivocada, pois os povos encontrados pelos escandinavos (europeus do norte), espanhóis e portugueses (europeus do sul) não se originaram na América. Esse foi o último continente a ser colonizado por humanos. Os povos “originários” da América provêm da Ásia, tendo chegado no fim do último período glacial, entre 25 e 15 mil anos passados, tanto por terra, pela ponte de Bering (entre Ásia e América), e por mar, em navegação de cabotagem. Austrália e Polinésia foram colonizados antes, em torno de 60 mil anos. Só os africanos merecem o título de originário, pois a humanidade nasceu na África. Assim, o nome mais apropriado para índios ou originários é pioneiros.

2- Pioneiro ou europeu. Em todos os municípios do Brasil, população, intelectuais e políticos estão divididos numa contradição nem sempre percebida. O dia do munícipio costuma ser o da fundação da vila ou da cidade. É um dos feriados municipais. Esse dia merece festejos e debates, como no caso do dia 28 de março em Campos, em que se festeja a elevação da vila a cidade. São Paulo festeja seu aniversário na fundação da vila, e não da cidade, para contar com mais tempo de história. No Dia do Índio, as etnias pioneiras são enaltecidas por aqueles mesmo que discutem o marco inicial do colonizador. Trocando em miúdos, por mais que reconheçamos as injustiças e a violência contra esses povos, a data que valorizamos é a do marco inicial oficial da colonização europeia. Esse marco traz embutidas a invasão, a conquista, a colonização e o extermínio dos povos pioneiros. Por essa razão, não aceito entrar em discussões ufanistas sobre a fundação de Campos, por exemplo. Não me importa se foi em 1653, 1677 ou em 1835. Aliás, me importará se a discussão se referir a processos.

Aborígenes da Austrália

André Martins da Palma teve papel relevante no movimento pela fundação da vila de Campos, em 1653. Ele redigiu a petição com essa reinvindicação ao representante da Coroa portuguesa do Brasil. Dele é também a primeira proposta de desenvolvimento de Campos em moldes europeus, datada de 1657. Nesse documento, ele se orgulha de ter dominado os povos pioneiros que habitavam a região. Nossa atitude é a de reverenciar André Martins da Palma no dia 28 de março e a de execrá-lo no dia 19 de abril. Geralmente, são as mesmas pessoas que o reverenciam e o execram.

3- Assimilação ou isolamento. Assimilar as etnias originárias de todos os continentes significa integrá-las num mundo globalizado. É interessante que essa discussão geralmente se refere a etnias cujo modo de vida classificamos como paleolítico e neolítico tardios. Os aborígenes da Austrália, os maoris da Nova Zelândia, os bosquímanos e os pigmeus da África e os primeiros habitantes da Amazônia são indígenas, originários ou pioneiros. Japoneses, chineses, indianos e islâmicos não são. Existem três posturas com relação aos povos indígenas, originários ou pioneiros: assimilá-los (substituir suas culturas pela ocidental), integrá-los (proteger suas culturas com acréscimos da nossa) e isolá-los (proteger sua cultura integralmente. A política mais comum é a da assimilação, como a de Bolsonaro, por exemplo. Em relação aos habitantes da ilha Sentinela do Norte, pertencente à Índia, a política é de isolamento total. Sendo possível, o isolamento total é a política mais acertada. Não sendo possível, os governos devem proteger ao máximo esses grupos em nome mesmo da mais avançada política de globalização, que preconiza a desglobalização parcial do mundo ou o estabelecimento de limites para a globalização.

Maoris da Nova Zelândia

Enfim, não cabem mais ufanismos e triunfalismos. Que datas fundantes sejam estabelecidas, desde que de forma crítica. Que os povos pioneiros sejam protegidos da melhor forma possível.     

4- Unidade do homem. Os defensores da supremacia branca não contam com a mínima base científica. Se um deles recuar 500 anos na sua árvore genealógica, encontrará fatalmente um amarelo e um negro como antepassado. A rigor, a humanidade é negra. O branco é um negro disfarçado. O asiático é negro em seu genoma. Aliás, a genômica demonstra claramente que todos nós somos negros. Trata-se de uma conclusão óbvia. Se a origem da humanidade está na África, toda ele tem um fundo negro. Tolice organizar uma árvore genealógica em busca de um negro, pois ele estará em algum galho. Mas, como os supremacistas brancos desprezam a ciência, continuarão a alimentar a farsa da raça pura.

5- Pré-história e história. Já escrevi a respeito dessa divisão da trajetória da humanidade para argumentar que ela não se sustenta. O que marca o fim da pré-história e o início da história? A divisão territorial e social do trabalho? A emergência do Estado? A invenção da escrita? Cabe lembrar que nenhuma dessas emergências originou-se como milagre. Sem o que se chama de pré-história não haveria história. Conclui-se, portanto que tudo é história.

Semang da Penísula Malaia

Apliquemos essa conclusão à história do Brasil. Acaso a história da Índia começa com a chegada dos europeus a ela em 1498 e com a elevação de Goa como sede do império colonial luso na Ásia e na África? Ou, antes da chegada de nossos bravos avozinhos, já havia uma longa história na Índia? Acaso a história da China começa com a fundação de Macau pelos portugueses na foz do rio das Pérolas? Ou com as Guerras do Ópio movidas pelos interesses comerciais da Companhia da Índias Orientais? Acaso a história do Japão começa com a Revolução Meiji, em 1868, abrindo o país para o ocidente?

Pigmeus aculturados do Congo

Nos três casos, os livros didáticos e especializados produzidos nos três países e no ocidente consideram que havia história neles antes da chegada dos europeus. A história da China e da Índia remonta a 1500 anos antes de Cristo. A dominação europeia em ambos acrescenta-se à história anterior das duas civilizações.

Bosquímanos da África

Pergunta-se então por que a história na América começa apenas com a chegada de Colombo e de Cabral? Por que se divide a história da América e de cada um de seus países em pré-história (até a chegada dos europeus) e em história (com a invasão, conquista e colonização europeia)? Por que não reconhecemos uma história pré-ocidental nas Américas como o fazemos em relação à Índia, China e Japão? Se só as civilizações merecem o estatuto de história, lembremos os casos dos Incas, Maias e Astecas. Lembremos que os chamados povos sem história têm história. Então, o certo seria admitir que a chegada dos europeus à América não inaugura a história do continente e sim inicia nova fase de um processo histórico milenar já existente.  

Puris na concepção dos europeus

6- Multiculturalismo e multinaturalismo. As culturas asiáticas e europeias foram muito marcadas pela agricultura e, principalmente, pelo pastoreio. Nelas, a imagem do bom pastor, aquele ser superior aos animais e mesmo superior aos demais humanos. A filosofia ocidental foi profundamente marcada por essa concepção. O filósofo é o bom pastor de humanos. Portanto, é superior ao rebanho. Pastor e rebanho são superiores a outros povos. Essa convicção moveu a dominação de povos não europeus pelos europeus. Todos os povos têm cultura, mas uma delas é superior às outras. A cultura ocidental é superior às demais culturas do mundo.

Já na Sibéria, na Oceania, na África e na América, desenvolveu-se outra concepção de mundo, que tem por base a caça. A agricultura e o pastoreio não foram tão marcantes em regiões geladas porque, nelas, as condições climáticas não permitiram o desenvolvimento da agricultura. O pastoreio não teve pleno desenvolvimento. Daí o modo de vida dos siberianos depender, em boa medida, da caça. Na Austrália, o ambiente repleto de animais também favorecia a caça. Na Oceania, o mar imenso era um convite à pesca. Na África subsaariana, a diversidade faunística reduziu a agricultura e o pastoreio, o mesmo acontecendo com a América.

Nativa brasileira aculturada

A caça como base da economia, em vez de o pastoreio, propiciou a formação de uma concepção de mundo diametralmente diferente da ocidental. Em vez de multiculturalismo, um multinaturalismo. Como explica o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, na visão multinaturalista, existe uma só cultura compartilhada pelos humanos e pelos animais. Mas cada um vê a natureza conforme sua anatomia. Assim, a natureza não é una, como para o ocidente, mas múltipla. O humano constrói sua natureza e a onça constrói outra. O sangue é o cauim para a onça, assim como o cauim é o sangue para o humano. Cada animal tem a sua natureza de acordo com sua perspectiva. Apenas o xamã tem acesso a essa diversidade de naturezas a aos espíritos. Daí o perspectivismo e o xamanismo.

Essa concepção de mundo está se extinguindo com a assimilação, a integração e o extermínio dos povos pioneiros.

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