Verão
As chuvas do verão de 2021-22 trouxeram muita destruição e dor entre a Amazônia e a Região Sudeste, passando pelo Centro-Oeste e parte do Nordeste. A Austrália também foi castigada em menos escala. As Zonas de Convergência Intertropical e do Atlântico Sul se intensificaram com o fenômeno de La Niña, todos agravados pelas mudanças climáticas cada vez mais fortes. O sul da Bahia, o norte do Espírito Santo, Minas Gerais, São Paulo, Petrópolis e o sul fluminense foram bombardeados pelas chuvas. Elas deixaram um cenário de guerra como o de algumas cidades da Ucrânia.
Mesmo tendo passado o verão, algum outro bombardeio aconteceu e ainda pode acontecer. Mesmo no outono, pode ocorrer algum fenômeno climático destruidor. Podemos esperar agora as secas ingentes no outono/inverno. O sul do Brasil, o Uruguai e a Argentina já foram assolados pelas estiagens em pleno verão. Na verdade, as secas tornaram-se crônicas.
Os mais novos informes do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) divulgados nos primeiros meses de 2022 advertem que plantas e animais acostumados a climas frios estão migrando para o norte e para o fundo dos oceanos, e milhões de pessoas correm o risco de desastres descomunais. Os relatórios falam do que está ocorrendo e insistem em advertências sabendo que ninguém dará ouvidos a elas. Nem empresários, nem governantes, nem sociedade. Desde 1990, o IPCC faz advertências. Há 30 anos, a humanidade lançava 30 bilhões de toneladas de gás carbônico na atmosfera anualmente. Hoje, esse volume dobrou. E a guerra da Ucrânia escancarou o emprego de minerais fósseis pela União Europeia. Até carvão mineral é importado da Rússia. No entanto, o discurso dos principais chefes de países europeus é o de substituição progressiva de petróleo, gás natural e carvão mineral por energia solar e eólica. Mas não apenas os países europeus dependem de minerais fósseis. O mundo todo é dependente deles. Poder-se-ia pensar que a guerra daria um impulso na substituição de energia não-renovável por renovável. Contudo, parece que as energias fósseis só deixarão de ser usadas quando findarem. Não sabemos, então, quem acabará primeiro, se os combustíveis ou se a economia de mercado, que ficou viciada nos combustíveis não-renováveis, como se fosse um alcoólatra. E um viciado em álcool ou em outra droga não consegue abandonar o vício de repente. É preciso todo um processo de transição.
Inundação em São Mateus (ES)
Analistas informam que vivemos uma transição na produção de energia: estamos abandonando as fontes fósseis e adotando a energia solar e eólica, além de outras formas renováveis. Essa substituição ocorrerá a tempo? Provavelmente não. Mesmo que a mudança se processe até 2050, a humanidade terá envenenado a atmosfera e os efeitos desse envenenamento se prolongarão por muitos anos ainda. É a previsão do IPCC, mostrando que os próximos três anos serão cruciais para a mudança. É um tempo muito curto para quem vai adiando medidas de transição.
Enquanto injetamos gases nas altas camadas da Terra, no solo, as instalações que erguemos se mostram despreparadas para enfrentar as oscilações climáticas destrutivas. Petrópolis foi arrasada por águas. O sul do Brasil foi arrasado pela escassez delas. Será assim daqui em diante. Esse é o novo padrão climático do mundo. Advertia-se, no passado, que as mudanças climáticas causariam prejuízos à economia. Os produtores não acreditavam nem se importavam com essas advertências. Agora, eles começam a sentir as perdas.
Substituímos uma destruição por outra ou esquecemos uma para ficarmos atentos a outra, se é que nos importamos com ela: a guerra da Ucrânia. Já estamos tão insensibilizados pelos meios de comunicação e por tanta desgraça que não nos comovemos mais tanto quanto devíamos. O mundo nos tornou insensíveis. Fomos anestesiados. Podemos aguardar a morte sem dor.
Águas de abril abrindo o outono
Enquanto as águas de março fecham o verão, as de abril abrem o outono. Foi o que aconteceu em abril de 2022 no Maranhão, Piauí, Pernambuco e na metade sul do estado do Rio de Janeiro, onde temporais volumosos atingiram a capital do estado, a baixada fluminense e o sul fluminense.
É preciso conhecer um pouco a topografia e a hidrografia dessa parte do estado. Entre Parati e a baía da Guanabara, a praia (linha de costa) está muito próxima da Serra do Mar. Os rios são pequenos porque não contam com espaço para se expandir. Assim, quando chovia forte no passado, os rios se transformavam em torrentes. Quando encontravam a maré cheia, as águas fluviais eram represadas e transbordavam. Tudo muito natural, sobretudo numa natureza tropical.
Aprendamos agora uma receita para fabricar desastres. Começamos a cortar as florestas nos morros e nas margens desses pequenos rios. As chuvas passarem a provocar mais erosão e assoreamento, transportando terra para o fundo dos rios. Eles ficaram mais rasos. Erguemos cidades típicas da América Latina e da África: riqueza e pobreza lado a lado, muitas vezes fortemente separadas. A tendência dos pobres é subir encostas e marchar para a beira dos rios. Chuvas fortes provocam deslizamentos de encostas, como se viu em Petrópolis, e transbordamentos de rios, inundando casas. Impermeabilizamos o solo com asfalto sem prover a cidade de galerias para escoamento de águas pluviais. Também não havendo rede de coleta de esgoto, resíduos líquidos vão para os rios e os poluem. De cursos d’água, ele se transformam em valas de esgoto.
Introduzimos bens de consumo com ou sem embalagens nessas desordenadas áreas urbanas (não são mais cidades). Lançamos o que resta do pós-consumo, ou seja, o lixo nas ruas, terrenos baldios e lixões. A Baixada Fluminense conta ainda com muitos lixões. Nas grandes cidades, uma greve de garis escancara o lixo circulante. O gari ainda o esconde. Para concluir, lançamos na atmosfera gases que provocam mudanças climáticas, com chuvas e secas atípicas. Choveu. É o caos.
No sul fluminense, existe outra questão: os cortes na montanha, muito próxima do mar, são íngremes, com quase 90°. A floresta é removida. As rodovias correm entre a serra e a praia. Vem a chuva forte. Deslizamentos de terra sobre a estrada. Acidentes e trânsito interrompidos. É a economia de mercado deixando sua marca.
Petrópolis e Angra dos Reis
Choveu mais em Angra dos Reis do que em Petrópolis. A constatação poderá causar surpresa, pois em Petrópolis morreram mais de 230 pessoas, enquanto que em Angra dos Reis morreram cerca de 20 pessoas, mesmo assim incluindo a Ilha Grande e Parati. Em Petrópolis, no dia 15 de fevereiro, choveu 230 mm em 3 horas. No dia 20 de março, em 24
horas, choveu 548 mm. De fato, é muita chuva. Mas na Costa Verde, onde se erguem Angra dos Reis e Parati, choveu 821 mm no dia 2 de abril. Em 96 horas, foram 899 mm. Vale dizer que, em 4 dias, choveu o equivalente a seis meses. Ambos os registros foram efetuados na praia de Araçatiba, na Ilha Grande, em frente a Angra dos Reis. Não houve tantas vítimas porque a praia não é muito habitada. Os especialistas concluíram tratar-se de um recorde no Brasil. Nunca choveu tanto em lugar por pouco tempo.
Como explicar a diferença? Petrópolis cresceu na zona serrana do Rio de Janeiro, longe do mar. As chuvas sempre castigaram o local em que a cidade foi erguida. Mas havia florestas, que foram em grande parte suprimidas progressivamente. Os rios são pequenos e transbordavam com muita chuva. Mas a situação se agravou com a canalização, o estreitamento, o assoreamento e o excesso de lixo sólido, que entope tudo. Petrópolis cresceu sobre áreas vulneráveis a chuvas. Além disso, o volume de chuvas aumentou com as mudanças climáticas. E não existe uma grande bacia coletora de águas pluviais. O mar está longe da cidade. Os pequenos rios correm para o rio Paraíba do Sul, que chega ao mar depois de muitos quilômetros.
Angra dos Reis e Parati, por outro lado, erguem-se junto ao mar. A Serra do Mar estende-se muito próxima da costa. Aconteceu, no início do outono de 2022, que altas temperaturas provocaram grande evaporação de água do mar. Ventos laterais empurraram o vapor d’água para o continente. Logo ele esbarrou na serra. Uma frente fria entrou e transformou o vapor em chuvas torrenciais. Não encontrando mais florestas protetoras, as águas correram sobre o solo. Elas correriam menos velozmente com matas. As águas furiosas encontraram casas em áreas de risco, tanto de pobres como de classe média, e as arrastaram em direção ao mar. Como o mar está muito perto da serra, ele funcionou como receptáculo das águas pluviais.
Notemos que a Terra está se aquecendo, que o mar está mais quente em virtude desse aquecimento. Que a evaporação é mais intensa, que os ventos são mais fortes, que as chuvas são mais volumosas. Todos esses fenômenos ficam numa ponta da vela. Na outra, ficam as encostas desprovidas de vegetação nativa, os rios assoreados e as cidades com crescimento desordenado pelas desigualdades sociais. A vela está sendo queimada pelos dois lados.
Deslizamentos de terra causados por intensas chuvas no sul do estado do Rio de Janeiro
Foi um rio que passou em nossas vidas
Numa reportagem sobre as chuvas torrenciais e destruidoras na grande Recife, Pernambuco, a repórter disse, em Camaragibe: “esse rio que passa perto das casas”. Ela não chama o rio pelo nome. Os rios perderam o nome. Os povos indígenas brasileiros batizavam os riachos mais insignificantes com nomes próprios, assim como as plantas e os animais. Nós apagamos esses nomes progressivamente. Corrijamos: os rios não passam em cidades nem em ruas nem em casas. As cidades, as ruas e as casas é que se erguem junto a rios.
E a concepção ocidental de mundo, que é a nossa, desmata as margens dos rios, canaliza seus cursos, joga esgoto e lixo neles, constrói barragens em seus leitos. Por outro lado, atividades humanas na Terra emitem gases que alteram o clima, provocando tempestades intensas, secas, incêndios, ventos destruidores.
Deslizamento de terra em Angra dos Reis
Então, quando essas chuvas atípicas se abatem sobre rios fragilizados e cidades que empurram a população pobre para margens e encostas, as águas enfurecidas destroem o que encontram pela frente. O lixo acumulado entope seus leitos e geram transbordamentos. E o noticiário enfoca os atingidos, desinteressado em ouvir alguém que possa explicar melhor o que está acontecendo nesses novos e terríveis tempos. Quando os ouve, as explicações não podem se estender. Quando se estendem um pouco mais, a perplexidade é muito grande.
O que fazer? Reconstruir as cidades como eram para que sejam novamente destruídas pelas próximas chuvas? Reconstruir as cidades levando em conta as mudanças climáticas? Ou combater as mudanças climáticas? Estou perplexo e noto que os especialistas também estão, embora não queiram admitir.
Transbordamento de rio
Moda verão-verão
Antigamente, no tempo das estações bem marcadas, os/as estilistas anunciavam suas coleções primavera-verão ou outono-inverno. Quando no hemisfério sul era verão, no hemisfério norte era inverno. Esse tempo está passando. Em breve, o verão, o outono, o inverno e a primavera tendem a desaparecer no norte e no sul. Parece que as estações se reduzirão a mais frio e menos frio. A calor e menos calor. A moda deverá acompanhar as mudanças climáticas.
O evento ocorrido recentemente começa a apontar para essa homogeneização das estações. Em março de 2022, os olhares estiveram presos na guerra da Ucrânia, no preço do petróleo, na inflação, no aumento do preço do tomate, nas eleições de 2022. As temperaturas nos dois polos da Terra subiram ao mesmo tempo, sem precedentes nos registros meteorológicos.
No dia 18 de março, o polo norte, que não tem muita terra por baixo, mas gelo por cima do mar, e que começa a derreter, alcançou 40º C. acima do “normal”. No Antártico, que tem um grande continente por baixo do gelo, a temperatura foi a 30º C além dos registros normais. Só pesquisadores vivem na Antártica. O Ártico é bem habitado por animais e pessoas. Os ambientes estão mudando em ambos os polos. Vegetais e animais começam a ocupar áreas antes desabitadas. Outros começam a desaparecer.
A variação climática da Terra depende dos polos. As chamadas geleiras eternas já não são tão eternas assim. O clima está enlouquecendo e nós – plantas, animais e humanos – com ele. Mas aguardemos. Dias piores virão. O Antártico ficou 4,8° C mais quente entre 1970 e 2000. No Ártico ficou, no dia 18/03/2022, 3,3° C mais quente que a média entre 1979 e 2000.
Urso polar morrendo de fome
Mudanças climáticas e mudanças sociais
Não se deve discutir mudanças climáticas apenas quando elas se manifestam na forma de chuvas torrenciais, secas intensas, ventos destruidores, calor e frio excessivos. Deve-se discuti-las o tempo todo, pois seus aviões de bombardeio estão sempre preparados para atacar o planeta. Quando elas estão em aparente silêncio, nós continuamos a alimentá-las com nossas emanações de gases.
O que cabe observar é que as manifestações das mudanças climáticas só atingem os pobres, destruindo suas casas modestas, seus parcos pertences e tirando suas vidas, como aconteceu no sul da Bahia, norte do Espírito Santo, Minas Gerais, Franco da Rocha, na grande São Paulo, Petrópolis e Angra dos Reis. Eles são as vítimas preferenciais por terem ocupado margens de rios e lagoas e encostas de morro. Não por desejo, mas por ser o espaço possível de ocupação.
Os remediados, a classe média, os ricos e muito ricos estão a salvo em terrenos seguros. Mas cabe observar que eles também começam a ser atingidos. Depois de chuvas, ventos fortes e secas, vemos estradas rompidas, automóveis arrastados com perda total, casas comerciais com perdas colossais de estoque. Os milionários se refugiam em abrigos. Os que vivem bem também já começam a ter perdas.
As enchentes de 2020 atingiram um bairro nobre de Belo Horizonte. A longa estiagem da Região Sudeste comprometeu o abastecimento de água de pobres e da classe media, afetando indústrias. Na Região Sul, o agronegócio foi assolado. Safras inteiras foram perdidas. Não dá para dizer que o mercado externo garantiu os ganhos do agronegócio porque a perda foi grande. Os preços no mercado interno sobem. Pode ser que o governo federal cubra os prejuízos. Mas até quando? Mesmo assim, a ficha demorará a cair na cabeça dos plantadores, dos economistas tradicionais e dos governantes, que continuam tratando os fenômenos climáticos como manifestações pontuais e eventuais. O clima está mudando e as mudanças vieram para ficar.
Houve um tempo no mundo em que os intelectuais acreditavam em utopias. O mundo era detestável. No século XIX, acreditava-se que apenas as injustiças sociais deveriam ser combatidas, liberais, socialistas e até a Igreja Católica acreditavam ser possível mudar o mundo. Mas, às injustiças sociais, adicionamos a crise ambiental antrópica. Mesmo assim, a crença num mundo melhor em termos sociais e ambientais continuou entre os pensadores, agora renovados. Atualmente, pensadores do porte de Manuel Castels (“Ruptura”, Rio de Janeiro: Zahar, 2018) declaram que estão confusos com o mundo e que não têm mais propostas para mudá-lo. O marxista esloveno Slavoj Zizek não vê mais um sujeito capaz de promover mudanças, nem individual nem coletivo. Existe uma multidão de miseráveis no mundo, mas eles estão espalhados e acabam optando pelo crime ou se convertem a igrejas neopentecostais (“Em defesa das causas perdidas”. São Paulo: Boitempo, 2011).Há autores que não dão o braço a torcer e continuam escrevendo e opinando sobre a grande mudança.
Não há mais lugar para a grande utopia, para pleitear um mundo perfeito. Como diz Edgar Morin, a utopia atual defende um mundo menos pior, mas não perfeito. O mundo natural e social sempre muda. Pode ser para melhor ou para pior. Não podemos descartar as grandes mudanças naturais e culturais. Podemos estar vivendo um período interglacial. Talvez sejamos colhidos por uma nova glaciação. Talvez uma grande mudança cultural do mundo comece com uma pequena mudança, como é comum acontecer com uma grande mudança. Talvez essa grande mudança seja catastrófica para a humanidade e a vida. Mas é difícil crer que cavemos nossa própria sepultura. A dos outros seres já cavamos e continuamos cavando.
Mas mudanças nesse mundo de crise são viáveis. Parece difícil e até mesmo impossível substituir os combustíveis fósseis por fontes renováveis de energia em três anos; deter a destruição das florestas tropicais; controlar a poluição dos rios e dos oceanos; reduzir a extinção de espécies. Contudo, algo se pode fazer se pretendemos mudar aos poucos. È possível mudar as cidades para que enfrentem com menos destruição causadas pelas mudanças climáticas. Quando pensamos em São Paulo, tais mudanças parecem e são bastante inviáveis. Mas não tanto para cidades como Iconha e Alfredo Chaves.
Podemos promover o plantio de árvores e criar áreas protegidas. Podemos combater as desigualdades sociais de forma moderada. Podemos começar a substituir o transporte individual pelo coletivo, o transporte a energia fóssil pelo transporte a energia solar e elétrica. Podemos criar sistemas para a conservação de água. Aparecem várias propostas de solução em nível experimental. Precisamos de mudanças em escala mediana pelo menos. Mas enfrentaremos um futuro mais dramático que o presente.
O futuro das cidades
Começo a distinguir três tipos de cidade em face de chuvas destruidoras: cidades com resiliência para enfrentar chuvas localizadas; cidades com necessidade de adaptação aos novos tempos e cidades inviáveis. A grande maioria das cidades ergueu-se num tempo em que os fenômenos climáticos eram previsíveis e não eram extremos. Elas não estão preparadas para os novos tempos, ou para o novo normal, como se vem denominando essa nova fase do Holoceno, época que começou a cerca de 10 mil anos e sofreu oscilações climáticas naturais. Os extremos climáticos atuais têm dedo humano.