Voltemos 200 ou 100 anos à bacia do rio Iconha. Não é preciso mais que isso. Ele é um rio pequeno, com apenas 24 quilômetros de extensão. Sua nascente situa-se a 800 metros de altitude, o que confere ao rio pequeno uma forte declividade. Isso significa águas sujeitas a corredeiras. Sua bacia também é reduzida, com poucos afluentes e rede de drenagem. Duzentos anos atrás, a bacia era coberta por florestas. Sua foz, no mar, era revestida por pujante manguezal.
Havia chuvas torrenciais extraordinárias na bacia? Sim, havia de tempos em tempos. É o que se chamava antigamente de cheias seculares. Pressupunha-se um regime hídrico regular com alterações para mais ou para menos de tempos em tempos. As florestas regulavam o regime hídrico. Elas retinham água quando chovia, reduzindo as cheias, e liberavam água para os rios da bacia no tempo das estiagens.
A primeira grande transformação começou com o desmatamento para a obtenção de lenha e madeira. Ganhava-se dinheiro pelos dois lados. Lenha e toras eram vendidas. As áreas abertas eram cultivadas. Os franceses instalaram, em 1730, um farol na ilha que levou o nome de Franceses, como várias outras no litoral brasileiro. Talvez já houvesse o abastecimento de água na foz do Iconha e a exploração de madeira na costa. Ao passar pela futura Piúma, em 1815, o príncipe naturalista Maximiliano de Wied-Neuwied anotou no seu diário de viagem: "Passamos, perto de Agá, pela povoação de Piúma, ou Ipiúma, onde um riacho do mesmo nome, navegável apenas por canoas, deságua no mar. Existe, nesse lugar, uma ponte de madeira de trezentos passos de comprimento, assentada no ponto de maior largura do riacho, verdadeira raridade nessas paragens. As margens são cobertas de vegetação densa, e a água escura, cor de café, como a maioria dos córregos de mata e dos pequenos rios da região."
Em 1815, portanto, já existia o povoado que daria origem à cidade de Piúma atual. O registro do príncipe confirma a tese, óbvia por sinal, de que a colonização europeia do Brasil começou pela costa. Só no século XIX, ela alcançou o interior, com exceção de Minas Gerais, alcançada um século antes. O inglês Thomaz Dutton Jr., que fez fortuna com o Barão da Lagoa Dourada, em Campos dos Goytacazes, requereu e ganhou terras no sul do Espírito Santo. Ele construiu um trapiche em Piúma e se enriqueceu mais ainda exportando madeira nobre para a Europa. As toras desciam em balsas conduzidas pelos índios puris, assim como nos rios Pomba e Paraíba do Sul, como relata Hermann Burmeister, outro viajante. Dutton trouxe sua família e colonos.
Os portugueses José Gonçalves da Costa Beiriz e Antonio José Duarte formaram uma firma que entrou em conflito judicial com o inglês Dutton e o venceram. Ambos trouxeram famílias italianas para o local que daria origem à Iconha. Logo libaneses chegaram ao lugar. A fundação do povoado de Iconha é atribuída aos dois portugueses. Não ao inglês.
Quem examina o vale do rio Iconha, nota que os pontos mais urbanizados são justamente Iconha e Piúma. Esta segunda localidade foi elevada a município em 1891, desmembrada de Anchieta, chamada na época de Benevente. Mas, em 1924, Piúma e Iconha passam a formar um só município.
Examinando um mapa da cidade de Iconha, nota-se como ela estrangulou o rio que lhe deu nome. Não houve qualquer respeito às faixas marginais de proteção. Várias casas estão debruçadas no pequeno rio. Esgoto doméstico e lixo são lançados em suas águas. Na Europa, também ocorreu a urbanização intensiva das margens de rios. A diferença é que, lá, a colonização é anterior à chegada dos europeus à América, o regime fluvial não apresenta as mesmas características dos rios tropicais e o descarte de desejos, punida com rigor, não pode ser feito nos rios.
Além de estrangulado pela cidade de Iconha, o rio está entupido de lixo. As intensas chuvas que caíram no sul do Espírito Santo, no verão de 2020, provocaram muitos estragos em Iconha. Não simplificarei o problema causado pelas chuvas culpando o desmatamento, o estreitamento do rio e a impermeabilização da cidade. O problema é mais grave e mais complexo. As chuvas estão se tornando arrasadoras. Elas estão surrando as cidades, que não estão preparadas para enfrentar a coça impiedosa do clima. As cidades ergueram-se de forma irresponsável mesmo antes das atuais mudanças climáticas. Basta ver os casos da cidade de São Paulo, que estrangulou o rio Tietê e outros, e de Belo Horizonte, que transformou o rio Arruda numa vala concretada.
Os municípios contam com verbas para atenuar os impactos das enchentes, mas é pouco. Torna-se mais insuficiente ainda com o agravamento do problema pelas mudanças climáticas. E o pior é que essas verbas não são convertidas em obras capazes de minorar os problemas. Assim, a destruição causada pelas chuvas gera apenas reclamações imediatistas de moradores, a morte de pessoas e ações paliativas da defesa civil e da população.
Em Piúma, o problema não foi tão impactante, por estar a cidade na beira do mar e por ter o poder público aberto um canal auxiliar no rio para escoamento das águas fluviais. Do ponto de vista ambiental, não tenho condições de avaliar os impactos desse canal. Piúma apenas recebeu o lixo e os móveis arrastados pelo rio Iconha.
Agora, de forma atípica, Iconha é assolada por nova enchente, como noticiou “O Jornal” em matéria de Helio Barboza publicada em 31.07.2020. Foram 175 mm de chuva em 10 horas. É muita água, sobretudo em tempo de estiagem. Em nota oficial, a prefeitura explica que promoveu a limpeza da rede de águas pluviais e que não desassoreou o rio Iconha por falta de recursos. Contatos com o Estado e com a União já foram feitos nesses tempos de pandemia. Antes de tudo, os governos das três instâncias da federação devem tomar um banho de atualização e de realidade, considerando que:
1- O Brasil, os estados e os municípios contribuíram para as mudanças climáticas atuais em graus diferentes. Por enquanto, não é possível calcular a contribuição de cada um em termos de emissões de gases do efeito estufa.
2- Nenhuma das três instâncias reverterá as mudanças climáticas, que assumiram caráter planetário. Só mesmo uma ação coletiva durante o século XXI poderá reduzir o impacto de tais mudanças.
3- Sendo assim, Brasil, estados e municípios devem se proteger da melhor maneira possível contra as chuvas torrenciais e as secas devastadoras que se transformarão no novo normal, como está na moda falar.
4- Não cabem mais desmatamentos nos seis biomas existentes dentro das fronteiras do Brasil nem acusar a Europa e os Estados Unidos de terem desmatado e exterminado seus índios. Esse tempo já passou, e não cabe invocar o século XIX para continuar com práticas reconhecidamente danosas para a Terra, com demonstra a comunidade científica.
5- Municípios e cidades construídos numa mesma bacia hídrica podem se consorciar para a abertura de lagoas nas margens de rios que, por meio de comportas, subtraiam água excessiva durante as chuvas que ameaçam transbordamentos por meio de comportas reguladoras.
6- As áreas ameaçadoras, como margens de rios, encostas e topos de morro devem ser reflorestados em consonância com a vegetação nativa pré-existente porque ela ajuda a regular o regime hídrico.
7- Os leitos dos rios devem ser desassoreados, com a retirada de lixo e a proibição de lançá-lo nos cursos hídricos, tanto quanto o esgoto.
8- Progressivamente, as casas construídas dentro das faixas de inundação dos rios devem ser retiradas. Esse é o caso de Iconha.
9- Por fim, as providências devem ser agilizadas no que concerne à burocracia, pois os prejuízos causados por enchentes e estiagens superam em muito os recursos aplicados em medidas que minimizem os desastres.