Aquém e além do rio Iconha

Por Arthur Soffiati

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20/11/2020

Arthur Soffiati

Intelectual por vocação e ofício, ecólogo militante, pioneiro da área de História Ambiental no país

Assim que o príncipe naturalista alemão Maximiliano de Wied-Neuwid deixou o rio Itapemirim, em 1815, ele apenas registrou em seu diário um trecho com pântanos e uma bela floresta. Encantou-se com ela e com as aves. Anotou a presença de grande quantidade de cansanção, planta urticante que maltratou os pés daqueles que andavam descalços (eram os pobres). Logo chegou à fazenda do Agá, perto de Piúma. Já Auguste de Saint-Hilaire, que passou pelo mesmo lugar em 1818, é mais detalhado. Ele escreveu que, ao deixar o rio Itapemirim, não encontrou nenhuma planta digna de registro (estranho não ter notado o cansanção), nenhum inseto, nenhuma casa, nenhuma pessoa, até Taopaba. Ali, havia uma choupana.

Essa choupana solitária no distante ano de 1818 parece ser a origem de Itaipava e de Itaoca, dois núcleos urbanos tão ligados que hoje formam um só. Nenhum dos dois naturalistas registrou riachos, pois rios não existem até o Iconha. Saint-Hilaire diz que, quando por lá passou, não encontrou água doce.

Como eco-historiador, fiz o trajeto dos dois e encontrei o córrego de Itaoca, degradado pela urbanização. Ele foi transformado numa vala de esgoto a céu aberto. Aliás, podem ter existido outros córregos transformados em escoadouros de esgoto ou mesmo sistema de condução de esgoto para o mar que pode ser confundido com um córrego. O de Itaoca está completamente eutrofizado. Sua foz foi manilhada até o início da praia.

Descarga de esgoto em Itaoca (ES) pelo antigo rio Itaoca

Mais ao norte da conurbação Itaoca-Itaipava, um córrego corre de forma intermitente, ao que tudo indica. Ninguém soube me informar o nome dele, o que se tornou muito comum na nossa cultura. Entre os povos indígenas, todos os acidentes geográficos são nomeados. Conosco, se não servem mais, são esquecidos. Embora sua vazão seja diminuta, parece que ele mantém sua barra sempre aberta. A estrada asfaltada passa sobre ele.

Córrego de nome ignorado entre Itaipava e Piúma (ES)

Daí em diante, só encontrei a foz do rio Iconha. Antes dela, o canal de Itaputanga, que foi rasgado num ponto em que o rio se aproxima do mar. Lembrei da vala do Furado, uma sangria do rio Iguaçu aberta em 1688 no norte fluminense. Tudo indica que o canal de Itaputanga foi aberto para auxiliar o escoamento das águas do Iconha em caso de cheias perigosas à população e à economia. Além do mais, ele propicia água para abastecimento público. Assim, a foz do Iconha foi transformada num delta antrópico com dois braços bastante afastados.

Aspecto do canal de Itaputanga, sangria no rio Iconha em Piúma. Urbanização e lançamento de esgoto

No trecho final do Iconha, há marcas visíveis de canalização em grande extensão do seu leito. Provavelmente obra do Departamento Nacional de Obras e Saneamento. Um canal longo liga o rio Itapemirim ao rio Iconha. É o canal do Pinto. O manguezal só se arraigou efetivamente no braço principal do rio Iconha, formando um bosque expressivo, mas descontínuo. No canal de Itaputanga, as plantas de mangue são poucas, embora haja condições necessárias para sua propagação.

Aspecto do manguezal do rio Iconha – Piúma

Piúma é uma cidade em grande parte voltada para o turismo. Sua população aumenta durante o verão e se retrai no inverso. Deve-se considerar que muitas pessoas se encantam pela cidade e nela fixam residência. Sua malha urbana adensou-se e alcançou a margem direita do rio, suprimindo considerável área do manguezal. Cabe registrar que até mesmo as sedes do Poder Judiciário Estadual e do Ministério Público Estadual foram erguidas em área de manguezal, considerado de preservação permanente pelo Código Florestal.

Fórum de Piúma construído em área de manguezal
Prédio do Ministério Público Estadual construído em área de manguezal

No caso, os dois prédios erguem-se na margem do rio Iconha e em parte do manguezal, ambas as áreas protegidas por lei. É bem verdade que, em se tratando de obras de utilidade pública e de caráter social, empreendimentos podem ser autorizados em Áreas de Preservação Permanente (APPs). Deve-se, todavia, sempre buscar alternativas para evitar a invasão dessas áreas, sobretudo em se tratando de instituições que devem zelar pelo cumprimento das leis. Na margem esquerda, a urbanização começa a fincar pé, sendo o terminal rodoviário da cidade o exemplo mais contundente. Às margens do canal de Itaputanga, já se erguem edificações que indicam o processo desordenado de expansão urbana. Acompanham-no o esgoto e o lixo.

Terminal rodoviário de Piúma construído em área de manguezal

Mais de duzentos anos depois, acompanho os dois naturalistas europeus, que partem de Piúma rumo ao rio Benevente. Maximiliano de Wied-Neuwied registrou campos cobertos de cana brava ou ubá. Ele atravessou também “um cerrado de árvores imponentes e frondosas, tais como ‘Cecropia’, ‘Cocos’, ‘Melastoma’; entre elas corre o escuro riacho Iriri, atravessado por uma pitoresca ponte feita de troncos.”

Depois de sair de Piúma, Saint-Hilaire pouco escreve. Mas registra uma ponte de madeira antes de chegar a Benevente. Deve ser a mesma ponte atravessada por Maximiliano. Atualmente, existe um balneário muito concorrido cujo nome é Iriri, que se ergueu junto à lagoa da Conceição. Ela não é uma verdadeira lagoa, pois se estende, em parte, por um terreno íngreme, em parte, por um terreno plano. Ela tem todas as características de um córrego com a foz barrada e consolidada, mas que, com volumosas chuvas, pode abrir. Quando franqueada, ou a água do curso verte para o mar ou a maré invade o sistema. Assim, formou-se um pequeno manguezal na parte baixa da chamada lagoa. A declividade do leito e as margens íngremes não disponibilizam área para o enraizamento de um bosque extenso.

Mais de duzentos anos depois, acompanho os dois naturalistas europeus, que partem de Piúma rumo ao rio Benevente. Maximiliano de Wied-Neuwied registrou campos cobertos de cana brava ou ubá. Ele atravessou também “um cerrado de árvores imponentes e frondosas, tais como ‘Cecropia’, ‘Cocos’, ‘Melastoma’; entre elas corre o escuro riacho Iriri, atravessado por uma pitoresca ponte feita de troncos.”

Depois de sair de Piúma, Saint-Hilaire pouco escreve. Mas registra uma ponte de madeira antes de chegar a Benevente. Deve ser a mesma ponte atravessada por Maximiliano. Atualmente, existe um balneário muito concorrido cujo nome é Iriri, que se ergueu junto à lagoa da Conceição. Ela não é uma verdadeira lagoa, pois se estende, em parte, por um terreno íngreme, em parte, por um terreno plano. Ela tem todas as características de um córrego com a foz barrada e consolidada, mas que, com volumosas chuvas, pode abrir. Quando franqueada, ou a água do curso verte para o mar ou a maré invade o sistema. Assim, formou-se um pequeno manguezal na parte baixa da chamada lagoa. A declividade do leito e as margens íngremes não disponibilizam área para o enraizamento de um bosque extenso.

Antigo rio Iriri, hoje lagoa da Conceição. Manguezal tendo ao fundo avanço da área urbana

Iriri é uma praia muito procurada por turistas. Assim, a urbanização cresce vertiginosamente, encurralando o córrego alagoado. Também é considerável a carga de efluentes líquidos e de despejos sólidos em suas águas. Os dois naturalistas não dão notícia de qualquer habitação. O núcleo urbano de Iriri deve ser posterior a passagem de ambos.

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