A expedição científica de Maximiliano de Wied-Neuwied: do Rio de Janeiro a Vitória (I)

Por Arthur Soffiati

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26/11/2023

Arthur Soffiati

Intelectual por vocação e ofício, ecólogo militante, pioneiro da área de História Ambiental no país

Em 1815, o príncipe naturalista alemão Maximiliano de Wied-Neuwied empreendeu uma das primeiras excursões científicas no Brasil depois da abertura dos portos, em 1808. Antes dessa data, a entrada de estrangeiros era proibida em função de guerras e contrabando. A expedição do príncipe alemão foi cuidadosamente preparada e contou com a presença de dois colegas seus que já estavam no Brasil: Georg Wilhelm Freyreiss e Friedrich Sellow, também naturalistas experientes e seus patrícios. Essa viagem se estendeu do Rio de Janeiro a Salvador entre 1815 e 1817. Maximiliano seguiu o caminho da costa do Brasil, com incursões para o interior. Deixou seu diário de viagem em dois volumes, com o nome de “Viagem ao Brasil”, publicado em 1820-21, além de livros eminentemente científicos que não foram traduzidos para o português. Acompanhamos essa excursão em quatro capítulos: do Rio de Janeiro a Cabo Frio; de Cabo Frio a Macaé, de Macaé a Itapemirim e de Itapemirim a Vitória. Avaliaremos posteriormente a oportunidade de chegar a Salvador.

Maximiliano nasceu em 23 de setembro de 1782. Seu nome completo era Maximilian Alexander Philipp, nascido em Neuwied, Renânia. Em 1815, ele contava 33 anos de idade. Sua equipe era consideravelmente grande, integrada por caçadores, taxidermistas e carregadores, além dos dois naturalistas mencionados.

O príncipe observou ecossistemas, plantas, animais, povos nativos, núcleos urbanos e costumes dos colonos. Cabe lembrar que o Brasil ainda era colônia de Portugal, sediando, no Rio de Janeiro, a capital do império colonial português, desde a transmigração da família real para o Brasil. A independência política do grande país só viria em 1822, com D. Pedro, filho do príncipe regente D. João. A família real portuguesa transferiu-se para o Brasil fugindo da invasão de Portugal por Napoleão Bonaparte e contando com o apoio da Inglaterra.

Beneficiando-se da abertura das colônias portuguesas para o mundo, Maximiliano realizou seu grande sonho de naturalista. Nobre e rico, ele cultivava grande amor pela ciência. Era um verdadeiro naturalista ao estilo do século XIX, isto é, estudioso da natureza, como Von Martius, Spix, Saint-Hilaire e Darwin, para só mencionar alguns nomes dessa época áurea do conhecimento científico. Ser naturalista então não era ser especialista numa das ciências da natureza. Aliás, as especializações não tinham sido criadas. Um naturalista conhecia o que hoje chamamos de astronomia, geologia, ecologia, botânica e zoologia. Particularmente, Maximiliano tinha um especial pendor por aves, mas observava os demais grupos de animais, as plantas e as rochas.           Em pleno romantismo, notaremos que esse movimento, manifestado principalmente nas artes com a Revolução Francesa, influenciou a ciência. Maximiliano era um romântico. Ele escrevia muito bem, dono de um estilo belo e preciso. Nada do ranço academicista que invadiu as ciências de um modo geral. Seu diário foi traduzido com apuro por Edgar Süssekind de Mendonça e Flávio Poppe de Figueiredo. Os comentários científicos couberam ao competente Olivério Pinto. A fidelidade ao texto e a pontuação merecem elogios aos tradutores. As notas de Olivério Pinto são primorosas.

Maximiliano não sabia desenhar bem, como outros naturalistas. Seus esboços foram redesenhados por algum desenhista e pintor de formação. Mas seu estilo ingênuo encanta. Tomando o mapa de Arrowsmith para se orientar, ele foi fazendo reparos nele com a finalidade de aprimorar o conhecimento geográfico que se tinha na época.

A expedição de Maximiliano passou pela Região dos Lagos em 1815. Em seu diário, ele fez anotações sobre Maricá, São Pedro da Aldeia, Araruama, Barra de São João e Macaé, além das observações que empreendeu sobre os espaços entre esses núcleos urbanos. Quando confrontamos as informações de Maximiliano sobre a região e a observamos hoje, parece que a Região dos Lagos do naturalista é um mundo perdido. Creio que, se ele ressuscitasse e voltasse a nos visitar, não reconheceria mais os lugares por onde passou.

Além do denso relato contido em Viagem ao Brasil, publicado na Alemanha, em dois volumes, em 1820-21, incorporando informações de muitas leituras, o príncipe escreveu também Beiträge zur Naturgeschichte von Brasilien, em quatro volumes, não traduzido para o português, analisando os animais que coletou na expedição. Escreveu também Abbildungen zur Naturgeschichte Brasiliens, com magníficas gravuras dos animais que encontrou no Brasil.

Alemão e romântico, Maximiliano tem pensamentos e atitudes que, para nós, seriam preconceituosas. Mas é preciso inseri-lo em seu tempo. Ele condena a escravidão, mas compra um negro. Ele condena o tratamento que os índios recebiam dos portugueses e brasileiros, mas compra o famoso Quak, que também leva para a Europa. Embora reconhecendo as injustiças praticadas contra os índios, ele está sempre com o dedo no gatilho para atirar neles, caso atacado. Instinto de sobrevivência.

Em suas andanças, Maximiliano se interessa mais pela natureza do que pelas sociedades humanas. Mas olha para essas com bastante agudeza. Sua vida foi longa. A longevidade não era comum no século XIX, mas o príncipe morreu em 1867, com 84 anos, em seu castelo, cercado da coleção que formou em suas viagens científicas. A expedição de Maximiliano partiu de São Cristóvão em 4 de agosto de 1815, considerado então um vilarejo nos arredores do Rio de Janeiro, em direção à Praia Grande, hoje Niterói. De lá, começou sua excursão no dia 6.

Maravilhado com o que hoje denominamos de Bioma Atlântico, os insetos luminosos, as rãs e as aves foram um espetáculo inédito para o príncipe. “Anima os bosques uma multidão de pássaros que iniciavam os cantos matinais. Se, de um lado, nos deliciávamos com as notas melodiosas de uns, de outro tínhamos a atenção chamada pela vistosa e brilhante plumagem de outros (…) A estrada seguia entre montanhas, cuja magnífica vegetação despertava grande admiração; plantações de mandioca, canas-de-açúcar, laranjeiras, cercando as casas de arvoredo, alternavam com pequenos brejos. Espessas touças de bananeiras, mamoeiros, altos e esbeltos coqueiros adornavam as habitações esparsas, enquanto várias e policrômicas flores desabrochavam sob as moitas baixas.”

Na condição de etnógrafo amador, ele descreve o cavalo mais comum no Brasil e a maneira de se vestir e de cavalgar do cavaleiro: “Os cavalos do Brasil são bons e ligeiros, se bem que pequenos; são originários da Espanha, e têm geralmente o corpo bem feito e pernas elegantes. As selas são ainda, como antigamente, pequenas e pesadas, revestidas de veludo, e muitas vezes curiosamente trabalhadas: têm um par de velhos estribos franceses de cobre ou ferro, trabalhados em filigrana; muitos trazem mesmo um completo sapato de madeira para receber o pé.”

Ele passou por São Gonçalo e se encantou com o rio Guaxindiba: “O Guaxindiba (ele escreve Guajindiba) é um riacho que serpeia, num gracioso leito de areia, entre densas matarias.” Acostumado às bem-comportadas florestas da Europa, Maximiliano teve dificuldades em marchar no interior das intrincadas florestas tropicais. “Todos os arbustos, especialmente as mimosas, são cheios de espinhos, e as muitas espécies de trepadeiras (‘cipós’) se entrelaçam tão estreitamente em volta dos troncos das árvores, que se não consegue varar tais brenhas sem uma grande faca de mato, ‘facão’. É também necessário usar fortes calçados de sola grossa, ou botas de caça (…) Os mosquitos atormentam extremamente o caçador, tanto no interior da mata como próximo da água. Conhecem-se esses minúsculos animais pelo nome de ‘maruim’; são muito pequenos, mas sua picada causa violenta comichão.”

Os espinhos eram capazes de perfurar grossas solas de sapato. A presença do mosquito maruim é indicativa da proximidade de manguezal. Trata-se de um pequeno inseto, quase imperceptível, cuja picada é perfeitamente suportável. No entanto, o local afetado logo incha por um dia ou mais.

Continuando o percurso, ele anota: “Não longe daí alcançamos uma grande floresta: altas e esguias mimosas de casca branca, cecrópias, cacaueiros e outras árvores se entrelaçavam tão intimamente com inumeráveis trepadeiras (‘cipós’ dos portugueses, ‘lianas’ dos espanhóis) que o conjunto parecia formar uma só e impenetrável massa (…) Passamos, depois, por trechos em que a floresta fora queimada em alguns lugares para fins de cultivo, ou, como se diz aí, para fazer um roçado, ou uma roça.” O ponto em que Maximiliano e seus companheiros se situam no tempo não permitia ainda perceber que a rota das relações entre sociedades humanas e natureza se dirigia ao empobrecimento da natureza. Portanto, ainda não causava espanto a supressão de vegetação nativa pelo fogo, a sua substituição por cultivos inadequados e a matança de animais.

Sua sensibilidade de etnógrafo registra o carro de boi usado no Brasil, que ainda é construído de modo mais grosseiro e elementar: “pesadas e maciças rodas de madeira, com duas pequenas aberturas redondas, giram com forte atrito em torno do eixo, produzindo agudo e áspero ruído, que se ouve a grande distância (…) parece se ter tornado para os lavradores uma necessidade o ouvir esta maviosa música.”

Na Serra do Inoã, divisor de águas entre a baía de Guanabara e a Região dos Lagos, ele informa que “Entramos num profundo vale, em que a água muito límpida ora corre sobre um leito de pedra, ora descansa em lagoa tranquila. Pouco além de uma floresta imensa, da qual nenhuma imagem pode dar uma ideia adequada (…) Naquelas sombras espessas, próximo às frias correntes da montanha, o viajante afogueado, especialmente o nascido nos países do norte, goza de uma temperatura absolutamente refrescante, aumentando o encanto que essas cenas sublimes trazem ao espírito, incessantemente arrebatado pelo selvagem panorama (…) Até as rochas se cobrem de milhares de plantas carnosas e de criptógamos entre estes belíssimos fetos, que em parte pendem das árvores, de maneira pitoresca, como fitas emplumadas (…) As árvores das florestas brasileiras são tão colossais que as nossas espingardas não lhe alcançam o cimo, de modo que muitas vezes atirávamos baldadamente em magníficos pássaros (…) A luxúria e a riqueza do reino vegetal na América do Sul é consequência da grande umidade que prevalece em toda parte. É uma nítida vantagem sobre todos os demais países quentes.”

Eis o depoimento arrebatado de um europeu e naturalista em contato com uma manifestação da natureza quase inimaginável a alguém que toma contato com um país ainda pouco conhecido. A expedição do príncipe se constitui na primeira tentativa de conhecer uma porção considerável do território brasileiro à luz do que se podia entender como ciência pós-Linneu ou ciência iluminista.

No alto da Serra do Inoã, ele encontrou o papagaio de cabeça vermelha e a Fazenda de Inoã. Usando o mapa de Arrowsmith e a observação científica, ele explica que “A Serra de Inoã é um braço que se projeta para o mar da altaneira cadeia montanhosa que corre paralela à costa. Cobrem-na densas florestas, onde existem muitas qualidades úteis de madeira e em que o caçador encontra abundante variedade de caça.” Assim como o maciço da Tijuca é uma ramificação perpendicular que parte da Serra do Mar, também assim a Serra de Inoã. Foi neste ponto que “… o Sr Freyreiss atirou em vão no pequeno macaco vermelho e dourado, conhecido por ‘mariquina’ (Simia rosalia, Linn.) ou sauí-vermelho. “Vive nas matas mais espessas e somente se encontra no sul, nas vizinhanças do Rio e Cabo Frio; pelo menos, nunca mais o encontramos para o norte.” O pequeno macaco não mais era senão um exemplar do mico-leão-dourado (Leontopithecus rosalia). A expedição prosseguiu em direção a Maricá, já na Região dos Lagos, colhendo papagaios-maracanã, aranha caranguejeira, o sapo Bufo bimaculatus (nomenclatura da época) e arapongas. E mais adiante: “A ensombrada floresta que agora atravessávamos era extremamente aprazível; bandos de papagaios voavam em derredor, numa ensurdecedora algazarra; entre eles era particularmente abundante belo periquito, de rabo pontudo, chamado ‘tiriba’ nessa região.” Nesse ponto, Maximiliano abateu uma espécie de esquilo (Sciurus aestuans, Linn), que não mais encontrará na sua expedição.

Depois de atravessar a serra de Inoã, vinda de São Gonçalo, a expedição de Maximiliano de Wied-Neuwied chega à Freguesia de Maricá, num povoado com uma população estimada em 800 pessoas. Nas margens do lago, ele explica: “O lago Maricá, junto ao qual levamos um dia a explorar-lhe as cercanias arenosas, tem cerca de seis léguas de circunferência. Suas margens são baixas e pantanosas, e o peixe é abundante.” Principalmente o bagre. Mas ele avista também muitas aves, grupo de sua predileção como naturalista. Uma delas, o urubu, leva-o a uma observação bastante pertinente: “Esses abutres representam uma dádiva da natureza em todos os países quentes; porque eles limpam o chão, que, a não ser assim, encheria o ar de exalações deletérias. O seu olfato é tão agudo, que, morto um animal, logo se precipitam para o lugar, em grande número, embora um pouco antes nenhum fosse visto, mesmo à distância; por isso, nunca os perseguem, sendo igualmente numerosos nas regiões descampadas e nas matas.”

Ao chegar à Vila de Santa Maria de Maricá, sede da freguesia, ele observou que as casas eram acachapadas e tinham um andar apenas. Havia só uma igreja. As ruas eram regulares, mas sem calçamento. A população plantava mandioca, feijão, milho, café e cana. Era mais comum, no passado, a diversificação da economia porque as distâncias eram percorridas com dificuldade, obrigando cada núcleo populacional a produzir para o autoconsumo e para a venda. Assim, a mandioca e a cana eram empregadas na fabricação da farinha e do açúcar. O café servia para exportação. O feijão e o milho para consumo interno.

O que chamou muito a atenção do príncipe naturalista foram os cupins e as formigas. Ele anotou que as “Formigas e criaturas semelhantes são no Brasil extremamente danosas às plantações.” A tanajura é comida pela população. “Não existem meios de proteger esses alimentos, a não ser o de pôr os pés das mesas dentro de latas cheias d’água, ou untá-los com piche; mas, ainda assim, muitas vezes elas vencem esses obstáculos. Algumas espécies constroem, com certa qualidade de terra, nas paredes dos quartos, túneis multirramificados, por onde sobem ou descem. Nas trilhas das florestas vimos exércitos inteiros de grandes formigas, todas carregando pedaços de folhas verdes para os formigueiros.”

De Maricá, encaminhou-se para a fazenda Guarapina, onde encontrou um importante engenho de açúcar. Maximiliano exerce, então, suas qualidades de etnógrafo, embora esta área do saber ainda não estivesse constituída. Não apenas com relação aos índios semiaculturados, ele se mostra um excelente observador, como também com as paisagens naturais e com as atividades praticadas por colonos. Com relação a um engenho, “A cana é colocada entre três cilindros verticais que se engrenam uns nos outros por meio de dentes de madeira dura, e assim a esmagam. A cana sai do outro lado como palha espremida e completamente achatada; e o caldo é recebido numa tina de madeira, colocada embaixo. Os cilindros são movidos a bois, burros ou cavalos por meio de um comprido varal. Em seguida, o caldo é fervido em caldeiras e posto depois para cristalizar em grandes potes afunilados, com um orifício no fundo, por onde se escoa o líquido em excesso; a superfície do açúcar que enche o pote é depois coberta com barro que se diz servir para clareá-lo.” Anota ainda que a cana vinda de Caiena estava sendo substituída pela cana do Taiti.

Mas o que encantou verdadeiramente o príncipe foram as florestas luxuriantes das partes montanhosas da Região dos Lagos. Em 1815, a Mata Atlântica não estava confinada ao norte da região. Mesmo junto à costa, nas partes montanhosas, ela se desenvolvia com toda sua pujança. Ele nota que “O europeu vindo do norte não tem a menor ideia dessa magnificência, nem há palavras para descrever o quadro com tintas comparáveis às sensações despertadas (…) Muitas vezes penetrei naquelas matas sombrias que cobriam as montanhas, e onde poderia ficar o dia inteiro, extasiando-me com a quietude e o solene silêncio nelas reinante, e apenas quebrados pelo vozerio dos bandos de papagaios. Tanto mais satisfeitos e felizes vivíamos no meio desses prazeres, nos arredores de Guarapina, quanto havíamos obtido farto suprimento de provisões frescas.”

Embora a Região dos Lagos se destaque das demais do Rio de Janeiro pelos atributos turísticos, onde estão as deslumbrantes florestas visitadas por Maximiliano e seus companheiros de viagem? Aí, ele encontrou o guariba, com sua voz roufenha, o lagarto teiú e muitas espécies animais extintas regionalmente. A caça científica e para alimentação ainda não era preocupante quanto aos impactos causados à biodiversidade, mas, sem dúvida, como bombas de efeito retardado, já estavam acionadas. Ao longo do seu trajeto entre o Rio de Janeiro e Salvador, a expedição encontrou com muitos caçadores.

Os índios aculturados eram, então, excelentes caçadores, por continuarem com os sentidos aguçados e por usarem agora armas de fogo.

Caçadores. Desenho original de Maximiliano integrante do acervo Robert Bosch GMBH

Em direção à lagoa de Ponta Negra, a coleção de animais abatidos aumentou com jaçanã, anu grande, tiê, bacuraus, sabiá, falena e lagartos. Atravessando terreno arenoso de dunas, ele registrou uma vegetação intrincada, com plantas herbáceas e árvores varridas pelo vento. Estamos em plena restinga. Maximiliano encontra um morcego morto, mas com o corpo íntegro, o único exemplar da espécie que avistou em toda sua viagem de dois anos.

Morcego do gênero Phyllostoma. “Abbildungen zur Naturgeschichte Brasiliens”

Após cruzar um colar de lagoas, bem característico da Região dos Lagos, a expedição chega à Lagoa de Saquarema. “O lago Saquarema – registra em seu diário – comunica-se com o mar e tem vasta extensão, cerca de 6 léguas de comprimento por 3/4 de largura (…) contém muito peixe.” Daí a existência de uma colônia de pescadores, que ele descreve em mais um exercício de etnografia: “… andam muito a frescata, como todos os brasileiros, usam largo chapéu de palha, calças leves e folgadas, camisa deixando o pescoço descoberto e os pés descalços. Todos carregam à cintura uma afiada faca de ponta, com cabo de latão ou de prata. Esta arma é de uso geral entre os portugueses; mas é muito perigosa, dando frequentemente lugar a assassinatos, mormente entre homens rudes como são os pescadores de Saquarema.”

Dessa colônia de pescadores, dirigiram-se à sede da Freguesia de Saquarema, mais ou menos a meia légua. Era uma pequena vila com uma igreja. Numa colina perto do mar, havia uma igreja, um cemitério e o posto telegráfico. Embora Maximiliano não fosse um bom desenhista e pintor, sua mão segurava uma pena como quem segurava um pincel e descrevia paisagens como se as pintasse. Em Saquarema, na beira do mar, ele demonstrou sua habilidade em descrever grandes paisagens: “À nossa frente, o oceano imenso, espumejando aos pés do monte em que estávamos; à direita, nos longes do horizonte, as montanhas do Rio; mais próximo, o longo litoral recortado, e, mais perto ainda, Ponta Negra; atrás, a serra coberta de matas, que se estendem também até a baixada, e, de permeio, a vasta superfície espelhante do lago. Aos nossos pés a freguesia de Saquarema, e, à esquerda, a costa, aonde as vagas vinham rebentar com tremendo estrondo. Esse enorme cenário, iluminado pelos últimos raios do sol agonizante, e aos poucos esbatido pelas brumas do crepúsculo, despertou em nossas almas a saudade da pátria longínqua (…) sentimos com intensidade quantas privações tem que arrostar o viajante, que, impelido por irresistível desejo de alargar os seus conhecimentos, sente-se sozinho num mundo desconhecido.”

Ao deixar Saquarema, ele anotou: “Deixando o lugar acima, entrávamos agora em florestas cheias de belíssimas flores. A maior beleza dessa zona está na quantidade de lagos espelhantes, que se estendem de Maricá às cercanias de Cabo Frio.” Na costa, ele registrou dunas e pântanos em terreno arenoso coberto do coqueiro anão guriri, ainda muito abundante. Ao chegar na fazenda Pitanga, os naturalistas da expedição entenderam que deviam passar ali alguns dias. Funcionava então uma fábrica de farinha, que o pendor do príncipe para etnografia descreve: “Para preparar a farinha, as raízes da mandioca são a princípio perfeitamente descascadas; depois, levadas a uma grande roda girante, em pouco se reduzem a polpa fina. A massa é colocada em seguida em grandes sacos, feitos de taquara ou de embira, que são pendurados e esticados ao comprido, desse modo espremem-se os sacos, expulsando o líquido existente na polpa. A parte sólida restante é posta em seguida em grandes tachos, de cobre ou de barro cozido, nos quais fica completamente seca pelo calor; porém a espessa maça, para não queimar, deve ser constantemente mexida por meio de um pau, tendo na extremidade, transversalmente, uma tábua. O pó seco, assim preparado, é chamado ‘farinha’.”

O saco a que se refere é o tipiti, instrumento de origem indígena incorporado pelos colonos europeus como tecnologia.

Nos arredores da fazenda, cercada de pântanos, campos e florestas muitos animais foram abatidos para a coleção zoológica, entre eles tucanos e, pela primeira vez, foi caçada uma jacupemba. Segundo Maximiliano, a fazenda da Pitanga era um velho convento.

De partida, penetraram numa daquelas “… florestas virgens, que durante a minha estada no Brasil sempre me proporcionaram as mais gratas emoções. Na orla da mata, altaneiros troncos de árvores mortas traziam a marca do fogo, por meio da qual se havia desbravado a região. A mata era uma escura selva formada por velhas árvores de porte colossal, tais como Mimosa, Jacarandá, Bombax, Bignonia e o pau-brasil, sobre que como sempre viviam, ou em que se enroscavam, Cactus, Bromelia, Epidendrum, Passiflora, Bauhinia, Banisteria e outras trepadeiras, cujas raízes se prendem ao solo, enquanto as folhas e as flores se expandem nos cimos das mais altas comas, motivo pelo qual só podem ser examinadas abatendo-se um desses gigantescos reis da floresta, cuja madeira, de extrema dureza, desafia o gume mais afiado (…) a vegetação é tão luxuriante nesses climas, que vemos em cada velha árvore um verdadeiro jardim botânico, muitas vezes difícil de atingir, e formado de plantas certamente na maior parte desconhecidas.”

Por mais frondosas que fossem as florestas, o fogo já estava sendo usado como a mais eficiente arma de desmatamento, e de maneira mais letal que os índios. Finalmente, a expedição chegou a São Pedro do Índios, hoje São Pedro da Aldeia, às margens da Lagoa de Araruama. De imediato, o que chamou atenção de Maximiliano em São Pedro da Aldeia foi a grande lagoa de Araruama, informando ele sobre sua salinidade e sobre a atividade econômica da extração de sal. Ele se voltou para o antigo aldeamento missionário e escreveu: “S. Pedro dos Índios é um aldeamento indígena (‘aldeia’), que parece terem os jesuítas primeiramente formado com os goitacás. Há aqui, como era de se esperar, uma bonita igreja, além de várias ruas, mas as residências são simples casebres de barro, todas elas, bem como a maior parte das habitações esparsas pelas cercanias, ocupadas por índios, que somente em parte conservavam o conhecimento da língua original”

Novamente exercitando seus dons de etnógrafo descreve o bodoque: “Este arco tem duas cordas separadas por dois pedacinhos de madeira; no meio, as cordas se unem por intermédio de uma espécie de trançado onde se coloca a bola de barro (‘pelota’) ou uma pequena pedra redonda.”

Bodoque. “Viagem ao Brasil”, de Maximiliano de Wied-Neuwied

Em contato mais demorado com índios aculturados, o príncipe teceu considerações a respeito deles e das relações que os europeus mantinham com eles. Ora ele se revela compreensivo, ora os preconceitos europeus afloram. O naturalista não percebia que dois sistemas econômicos estavam em conflito: a economia de mercado europeia, que valoriza o trabalho, o empreendedorismo e o lucro, e a economia de subsistência dos ameríndios, que buscava apenas atender às necessidades básicas de um ser humano. Leiamos o que ele escreveu: “… parte das acusações sobre a rudeza e o frequente mau caráter desses índios se deve descontar do tratamento errado e opressivo que outrora lhes dispensaram os europeus, os quais, muitas vezes, nem reconheciam neles criaturas humanas, associando, aos apelidos de caboclos e tapuias, a ideia de animais, criados apenas para serem maltratados e tiranizados.”

Contudo, em outro momento, ele externa seu preconceito: “… ainda mostram invariável tendência para a vida indolente e desregrada. Gostam de bebidas fortes e detestam o trabalho, não têm firmeza em suas palavras e são poucos os exemplos, entre eles, de caracteres dignos de nota. Não que tenham inteligência apoucada; compreendem rapidamente o que lhes ensinam, sendo além disso espertos e astuciosos. Um traço notável de seu caráter é o orgulho indomável e a forte atração pelas matas. Muitos deles ainda não se libertaram de velhas crenças, e os padres se queixam de que são maus cristãos.”

Em contrapartida, “Os negros têm mais capacidade e perseverança para aprender todas as artes e ciências; alguns chegaram mesmo a tornar-se homens muito notáveis (…) Enquanto os índios têm o suficiente para comer, não é fácil persuadi-los a trabalhar; preferem passar o tempo em danças e bebedeiras. As danças atualmente em voga foram tomadas aos portugueses.” Lendo essas linhas à luz dos estudos atuais, conclui-se que a análise é rasa. Os índios foram escravizados pelos europeus. No México e no Peru, a escravização indígena atendeu mais às expectativas dos espanhóis porque já havia uma tradição de sedentarismo e de produção de excedentes entre eles. No Brasil, os índios ou colhiam alimentos e matérias primas, praticando uma agricultura incipiente. Já os escravos africanos não apenas conheciam a instituição da escravidão na África, como também a agricultura e o pastoreio. Além do mais, o comércio de escravos africanos era muito mais lucrativo que o comércio com índios. A própria Igreja protegeu os índios mas aceitou a escravidão de negros.

Outra observação acurada de Maximiliano foi quanto ao uso de técnicas e tecnologias indígenas pelos portugueses para lidar com os ecossistemas brasileiros. Novamente, exibindo seus dotes de etnógrafo, ele descreve a canoa e a canoagem indígenas: “Os Tupinambás e outras tribos aborígenes usavam embarcações desse tipo, que os portugueses depois adotaram. São feitas de um único tronco de árvore, e extremamente leves: os índios manejam-nas com admirável destreza. Variam muito de tamanho: umas são tão estreitas, que quem vai dentro precisa muito cuidado ao mexer-se, para não virá-las; outras, ao contrário, são de troncos de tamanha grossura, que oferecem segurança mesmo no mar, desde que não muito agitado.” Eis aí um belo exemplo de técnica e tecnologia adequados aos ecossistemas aquáticos tropicais.

Voltando o olhar para a natureza, Maximiliano encontra uma preguiça-de-coleira, que descreverá rapidamente em seu diário de viagem e, mais longamente, em obra científica escrita posteriormente sobre o Brasil. Ela também será representada em livro de divulgação editado na Alemanha. “A preguiça de coleira Bradypus torquatus é uma forma nova, ainda não descrita. Difere muito pouco do ‘aí’ em tamanho e forma; a cor, porém, é uma mescla de cinzento e avermelhado; a cabeça pende mais para o avermelhado, e é misturada de branco. Na parte superior do pescoço há uma larga mancha de pelo comprido e negro. Essa espécie tem nos pés três dedos como o ‘aí’ e não dois, como diz Illiger no seu Prodromus.” “Aí” é o nome que os indígenas davam à preguiça-de-óculos.

Preguiça-de-coleira (Bradypus torquatus). “Abbildungen zur Naturgeschichte Brasiliens”

Contudo, a grande informação fornecida pelo naturalista refere-se à biodiversidade vegetal encontrada nas florestas da Região dos Lagos. A lista de árvores é extensa: pau-brasil, ipê de várias espécies, piquiá, pitomba, óleo pardo, ipê-una, imbiú, jaquá, grubu, grumbari, maçaranduba, graúna, sergeira, jarraticupitaia, jacarandá, cuirana, peroba, canela, caubi, majole, sepepira, putumaju (araribá) e grande diversidade de plantas medicinais. Esta lista poderia servir aos botânicos da atualidade na procura destas espécies, pois as florestas da Região dos Lagos foram praticamente exterminadas.

Chegando em Cabo Frio, ele anota: “Esta cidade, embora pequena e mal calçada, possui diversas casas de bonita e asseada aparência. A língua de terra, em que está construída, é paludosa perto da lagoa e arenosa ao longo do mar (…) Toda a região circunjacente é cortada de lagos e pântanos, e por isso dizem ser sujeita a febres (…) Os habitantes do lugar vivem da exportação de certos produtos, como farinha e açúcar.” Quanto à lagoa de Araruama, “… era pouco profunda, e tão transparente, que podíamos ver nitidamente a areia branca do fundo, com sua vegetação coralina.”

Quanto aos manguezais na Região dos Lagos, ele observa: “Na beira das lagoas e pauis, principalmente perto dos mangues (Rhizophora, Conocarpus e Avicennia), descobrimos grande número de buracos cavados na terra. Servem de refúgio a caranguejos chamados aqui ‘guaiamu’, e que não devem confundir com outra espécie, encontrada na areia da praia, conhecida por ‘siri’ (…) O guaiamu é maior do que o siri; apresenta cor de ardósia suja, tendendo um pouco para o plúmbeo, e sem manchas (…) É difícil de caçar, porque, ao menor ruído, se esconde na toca. (…) Constitui um alimento básico entre os brasileiros, cuja indolência é muitas vezes tão grande, que, tornando-se o peixe escasso, vivem apenas do guaiamu, regime que achamos miserável.”

Ainda em Cabo Frio, Maximiliano colhe um exemplar de calango verde e outro de jiboia.

Calango verde (Ameiva ameiva) “Abbildungen zur Naturgeschichte Brasiliens”

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