Um idoso na Copa do mundo

Por Arthur Soffiati

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18/12/2022

Arthur Soffiati

Intelectual por vocação e ofício, ecólogo militante, pioneiro da área de História Ambiental no país

Gosto de viajar, mas nunca pensei em acompanhar uma Copa do Mundo no local em que se realiza. Confesso, contudo, que decidi acompanhar o campeonato mundial no Catar. Economizei dinheiro durante um ano e empreendi uma longa viagem, embora já idoso. Estou em Doha, capital do Catar. Embora não tanto interessado por futebol a ponto de gastar muito dinheiro, tomei a decisão da viagem mais para conhecer o Oriente Médio, o deserto e o Golfo Pérsico. Agora, que a Argentina se tornou tricampeã mundial, posso escrever com mais tranquilidade.

O que acontece aqui é um despropósito. Andei pelo país todo. A área dele é bem menor que a do Espírito Santo. A torre de Babel foi destruída por Deus, mas reconstruída atualmente em vários lugares. Um deles é o Catar. O país é originalmente desértico. A vegetação do interior é rala. Existem animais que se adaptaram a essa condição de secura. Eles vivem bem no deserto, que tem paisagens lindas. Eu precisava conhecer um deserto de verdade. Andei pelo país todo por suas estradas de primeiro mundo. Cheguei antes dos jogos para viajar.

A gente sai do centro do deserto e vai para a beira do mar. O país fica numa península. Nas bordas, existem cidades descomunais. Verdadeiras demonstrações de ostentação. De onde vem tanto dinheiro para tanto exibicionismo? Não é da agricultura, da pecuária e da indústria. É do petróleo e do gás natural, que vêm das entranhas da areia. Toda a vegetação pujante das cidades e dos campos de futebol vem da água e da terra modificada pela ação humana.

Mas caminho para as praias. Viajo para a cidade de Al Dhakira, ao norte de Doha, e encontro uma floresta dentro do mar. Como é possível? Chego mais perto e encontro velhas amigas minhas: plantas de manguezal. Plantas do mesmo gênero que encontro na foz do Itapemirim. São plantas do gênero da siribeira e do mangue vermelho. E protegidas pelo governo para obtenção de renda com o turismo. O país ganha dinheiro com isso. Aqui, nós jogamos dinheiro fora e ainda destruímos o mangue. Sinto-me em casa nessa paisagem.

O Catar é um país entre o passado e o presente. Entre o ocidente e a tradição árabe. Os demais países árabes também. Gostaria de aproveitar essa oportunidade para conhecer os outros, mas não será possível, infelizmente. Por cima, o país é pobre. Puro deserto onde se instalou uma comunidade de pescadores de pérolas no passado. O petróleo permitiu excessos de novo rico. Edifícios deslumbrantes no meio do deserto, agora transformado em área úmida que permite a criação de áreas verdes e gramados de campos de futebol. Esses edifícios são ocidentais mas com arquitetura de fortes traços muçulmanos. Foi uma grande

combinação. Mas prefiro o Catar antigo. São grandes os contrastes. Fotografei duas mulheres, ambas com roupas pretas cobrindo o corpo inteiro. Mas uma mostrava o salto alto típico da moda ocidental. Outra caminhava falando ao celular, como acontece no mundo todo.

Fui ao Museu Nacional do Catar. Numa das praias, uma mulher junto a um homem (não sei se casados) estava dentro da água. Os pés podiam aparecer, mas não os braços.

Não sei o que acontece em Doha entre às 10 da noite e às 8 da manhã porque procuro dormir nesse horário. Mas, durante o dia, vejo torcedores dos países participantes da Copa andando pelas ruas. Suas roupas têm a cor da bandeira de seus respectivos países. Agora, várias pessoas mandaram fazer trajes árabes nessas cores. Tenho a impressão de que esses rebanhos humanos não sabem direito aonde estão e se comportariam assim na Islândia, no Japão, na África do Sul ou em qualquer outro lugar do mundo. As pessoas parecem não olhar para os lado. Só olham em direção aos estádios, de preferência com cerveja na mão. Como essa turma é feliz!

Já, da minha parte, assisto apenas aos jogos do Brasil e aproveito o intervalo entre um e outro para conhecer o país e seus arredores. Tenho uma curiosidade insaciável e sofro

com isto. Eu bem podia estar usando trajes com as cores do Brasil, sorrindo e bebendo cerveja. Mas ando pelo deserto. Visito museus. Procuro pratos típicos do país. Aprecio o mar. Observo os habitantes do país. Já montei num dromedário e me tornei amigo do animal.

Vou a Ormuz. Procurei uma agência de turismo e contratei a viagem. São duas horas de ida e duas de volta. Vocês sabem aonde fica Ormuz? Sabem o que Ormuz significou para os portugueses no século XVI?

O estreito de Ormuz comunica o oceano Índico com o golfo Pérsico. No final, é o mesmo oceano. Nesse estreito, que se tornou célebre como rota comercial entre Oriente e Ocidente, fica a ilha de Ormuz. Hoje, sua importância é mais estratégica, pois a ilha pertence ao Irã, país que afronta a supremacia norte-americana. Em 1507, o conquistador português Afonso de Albuquerque, saindo de Goa, capital do império português no Índico, atacou Ormuz e a dominou. Ele tentava, assim, controlar o comércio entre o golfo Pérsico e o mar Mediterrâneo (ainda não existia o canal de Suez). Na ilha, Afonso de Albuquerque construiu o forte de Nossa Senhora da Vitória, mas não o concluiu. Foi obrigado a abandoná-lo em 1508. Mas voltou em 1515, quando reconstruiu o forte, agora com o nome de Nossa Senhora da Conceição de Ormuz. Mas a Pérsia (antigo Irã) recuperou a ilha em 1622. No final, ela acabou nas mãos dos ingleses. É essa ilha que visitei. Conheci as ruínas do forte e ainda parte da ilha em que o Irã criou uma área para proteger uma linda floresta de manguezal. Trata-se da Reserva de Hara. Nessa floresta, senti-me em Marataízes.

Terminado mais um jogo do Brasil, decidi visitar o delta formado pelos rios Tigre e Eufrates, local conhecido como Chat-el-Arab. Ali nasceu a Suméria, a mais antiga civilização da mundo, há cerca de 5.200 anos antes do presente. Nesse tempo, as planícies aluviais e as restingas do Espírito Santo ainda não existiam ou estavam se formando. Na Suméria, foi criado o primeiro sistema de escrita. Sei que está tudo mudado. Hoje, existem apenas ruínas civilização sumeriana, que deu origem à Mesopotâmia. Meu objetivo era chegar a Basra, cidade ao sul do Iraque, navegando pelos canais do grande delta.

Saí cedo de Doha, agora rumo ao norte. Passei pela ilha de Bahrein. Mais adiante, no Kwait, motivo da Guerra do Golfo, entre Iraque e uma coalizão de países liderados pelos Estados Unidos, em 1991. Foi nesse ponto que Saddan Hussein, então presidente do Iraque, lançou petróleo como arma de guerra e provocou estresse nos manguezais. Eles desenvolveram sistemas de sobrevivência. Algo fantástico.

Cheguei na boca dos rios Tigre e Eufrates. Que caos maravilhoso! Nem o maior senso de orientação permite navegar esses canais todos sem que o navegante se perca. É preciso conhecer muito bem cada canal para chegar a Basra, cidade ao sul do Iraque, também conhecida como Bassorah.

Dizem que é uma cidade violenta e perigosa. Andamos um pouco por ela sem encontrar qualquer ameaça. Éramos um grupo de turistas. Visitamos a mesquita da cidade.

A civilização mesopotâmica não existe mais. No lugar dela, existe o Iraque, um país árabe-muçulmano. Mas me senti realizado ao conhecer o zigurat de Basra. Segundo a Bíblia, a Torre de Babel era um zigurat, uma espécie de pirâmide usada por fora. Não consegui

uma foto como eu desejava por conta de muitos visitantes. Então, busquei uma foto na internet.

O que me impressionou foi o volume de lixo. Estou satisfeito com as excursões que fiz.

Nos dia em que o Brasil não joga, aproveito para conhecer o golfo Pérsico, essa grande reentrância da costa com uma natureza peculiar. As margens são desérticas e os vales do Tigre e Eufrates eram férteis. O golfo desempenhou papel importante no comércio

entre o Oriente e a Europa na chamada Idade Média, foi o centro de conflitos e continua sendo uma rota importante no comércio do petróleo, além de região estratégica.

Mesmo contente com as viagens decidi visitar os Emirados Árabes. Creio que todos ou muitos já ouviram falar nos Emirados, mas quase ninguém sabe do que se trata. São sete emirados: Abu Dhabi, Dubai, Xarja, Ajmã, Umm al-Quwain, Ras al-Khaimah e Fujaira. Cada um é um estado independente e soberano, mas unidos em torno de interesses comuns. O principal é o petróleo. A federação faz fronteira com Omã e Arábia Saudita. Os emires escolheram Abu Dabi como capital, a segunda cidade do conjunto. Deserto por cima e petróleo por baixo. Sobre o deserto, muita urbanização e sempre megalomaníaca. Ostentação. O islamismo é a religião oficial. O árabe é a língua de Estado. Sistema político centralizado. A mulher ainda é cidadã de segunda categoria, mas isso está mudando. A riqueza do conjunto é muito grande. Até existe boa distribuição de renda. Em Fujaira, visitei uma reserva que protege o manguezal. Desde os anos de 1980, propomos um sistema de proteção semelhante para os manguezais do Espírito Santo: uma passarela que cruza o manguezal e permite sua visitação sem que se pise em suas raízes.

Quem escreve um romance conta mentira ou faz ficção? Machado de Assis criou Brás Cubas, um personagem que narra sua história depois de morto. Desde o princípio, sabemos que não é real, mas não é mentira. É ficção. Foi o que eu fiz, amigos e amigas. Não tendo dinheiro para bancar uma viagem, criei uma fantasia. Não saí da minha casa, da minha cidade, do Brasil. Fiz uma viagem imaginária ao Catar. Li, pesquisei, procurei fotos e redigi um pequeno diário de viagem. Várias pessoas acreditaram nela. Outras ficaram desconfiadas. Outras ainda sabiam que eu não havia saído do lugar. Desculpem a brincadeira. Pelo menos aprendi e busquei a realidade para construir essa fantasia no deserto.

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