Córrego de Itaoca

Por Arthur Soffiati

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20/11/2022

Arthur Soffiati

Intelectual por vocação e ofício, ecólogo militante, pioneiro da área de História Ambiental no país

Água e ar são os dois grandes sustentáculos da vida na Terra. Sem eles, não haveria plantas e animais, como as pesquisas sobre outros planetas do sistema solar estão demonstrando. O ar envolve toda a Terra. A água salgada ocupa 70% dela. A água doce corre pelos continentes por um sistema de vasos semelhantes ao sanguíneo. Há artérias, veias e capilares. Os maiores rios dependem dos menores, dos diminutos, dos ínfimos, da água subterrânea, das chuvas.

Entre Vitória e os limites do Espírito Santo com o Rio de Janeiro, correm vários rios entre médios, pequenos e diminutos. A maior bacia é a do Itapemirim, mesmo assim pequena se comparada com a de outros rios que correm pelo território que recebeu o nome de Brasil. Nunca se busca saber qual o menor, já que nossa preocupação é sempre com o grande, com o maior. Em todo o caso, todos eles – ou quase todos – estão bastante afetados por ações humanas. O desmatamento, a erosão, o assoreamento, os barramentos, a poluição e a invasão de espécies exóticas representam os principais problemas que afetam os rios do Espírito Santo, do Brasil e do mundo.

Já examinamos um pequenino rio do sul do Espírito Santo a que batizamos de Parati por terem esquecido seu nome original. Córrego, riacho, ribeira são as denominações para pequenos rios. O que destacamos hoje é o córrego de Itaoca, em torno do qual ergueu-se o conglomerado urbano formado por Itaoca e Itaipava, entre Marataízes e Piúma. Quem passa por ele, até mesmo o viajante atento, tem dificuldade de notá-lo, pois a urbanização o aterrou em parte e o poluiu. Passa a ser confundido com uma vala de esgoto que chega ao mar. No entanto, uma placa adverte que se trata de um pequeno rio.

O príncipe naturalista alemão Maximiliano de Wied-Neuwid passou por sua foz em 1815 e nada notou. Havia muitos rios médios e grandes para que ele notasse córregos. Em seu diário de viagem, publicado em dois volumes nos anos de 1820 e 1821, apenas há o registro de um trecho com pântanos e uma bela floresta. Encantou-se com ela e com as aves. Anotou a presença de grande quantidade de cansanção, planta urticante que maltratou os pés daqueles que andavam descalços (eram os pobres). Logo chegou à fazenda do Agá, perto de Piúma (Viagem ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia/São Paulo: EDUSP, 1989). Já Auguste de Saint-Hilaire, que passou pelo mesmo lugar em 1818, é mais detalhado. Ele escreveu que, ao deixar o rio Itapemirim, não encontrou nenhuma planta digna de registro (estranho não ter notado a cansanção), nenhum inseto, nenhuma casa, nenhuma pessoa, até Taopaba. Ali, havia uma choupana.

Essa choupana solitária no distante ano de 1818 parece ser a origem de Itaoca e de Itaipava, dois núcleos urbanos tão ligados que hoje formam um só. Nenhum dos dois naturalistas registrou riachos, pois rios não existem até o Iconha. Saint-Hilaire diz que, quando por lá passou, não encontrou água doce (Viagem ao Espírito Santo e rio Doce. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1974).

Como ecohistoriador, fiz o trajeto dos dois e encontrei o córrego de Itaoca, degradado pela urbanização. Ele foi transformado numa vala de esgoto a céu aberto. Aliás, podem ter existido outros córregos transformados em escoadouros de esgoto ou mesmo sistema de condução de esgoto para o mar que pode ser confundido com um córrego. O de Itaoca está completamente eutrofizado. Sua foz foi manilhada até o início da praia.

Descarga de esgoto em Itaoca (ES) pelo antigo córrego de Itaoca

Seguido o curso do pequeno e poluído rio para o interior e sem sair do meio urbano, encontra-se uma placa informando o nome do córrego. É algo raro hoje em dia, que os nomes de rios estão sendo progressivamente esquecidos. Do menor ao maior, eram nomeados pelos povos nativos. Todos mereciam respeito. As sociedades europeias mestiças que se instalaram na América a partir do século XV foram progressivamente vilipendiando os rios e esquecendo seus nomes.

Ao se atravessar a rodovia ES-060, o córrego começa a desaparecer em meio ao mato e as casas. Seu leito foi adulterado. Suas águas poluídas fertilizam plantas espontâneas. Elas são chamadas de mato, embora exista uma pequena diversidade entre elas. Capins e mamona são indicadores de poluição e de degradação ambiental.

Marcas da degradação do córrego de Itaoca

A montante do núcleo urbano, pode-se ter uma visão bastante adulterada do que foi o córrego de Itaoca. As condições ambientais tornam-se menos críticas, embora ainda muito alteradas pela ação humana predatória.

Córrego de Itaoca acima do núcleo urbano

Uma imagem aérea mostra o trecho final do córrego no meio urbano até alcançar a praia na forma de língua negra. A cidade o engoliu, aterrou, canalizou e poluiu. O curso se tornou proibitivo a peixes. Hoje, é apenas repositório de esgoto e de lixo inorgânico. Seria possível pensar-se em sua restauração e revitalização? Pensar sempre é possível. Criar faixas marginais de proteção nas áreas urbana e rural. Implantar rede de coleta de esgoto. Impedir o lançamento de resíduos em seu leito e margens. Plantar espécies vegetais nativas em suas margens. Permitir a volta parcial de espécies nativas de peixes. Com um curso d’água pequeno, a revitalização é menos difícil e valorizaria o meio urbano. Contudo, é difícil imaginar que tais medidas sejam tomadas.

Visão aérea do córrego de Itaoca

 

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