Reflexões de um climatologista amador

Por Arthur Soffiati

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26/09/2022

Arthur Soffiati

Intelectual por vocação e ofício, ecólogo militante, pioneiro da área de História Ambiental no país

Desertificação do mundo

Procurando, na Internet, notícias de mudanças climáticas na Ásia, encontrei informações bastante esparsas de altas temperaturas e chuvas torrenciais na China, foram registradas temperaturas entre 40 e 42 graus Celsius em pleno inverno. Ao mesmo tempo, chuvas intensas se precipitaram nas áreas das províncias de Heilongjiang e região da Mongólia Interior.

Concentrei-me, particularmente, em Heilongjiang, às margens do rio Songhua, o maior afluente do rio Amur. Tem um curso de 1927 km, quase duas vezes o comprimento do rio Paraíba do Sul. Como em quase todos os rios médios e grandes do mundo, ele tem represas. No Songhua, uma barragem forma um lago de 62 km de extensão para a geração de energia elétrica. Em 2005, suas águas foram contaminadas com benzeno vazado de uma fábrica petroquímica, poluição que chegou à Rússia e motivou deste país severas reclamações junto ao governo chinês.

Mas o que chamo a atenção é a feição do terreno em que corre o rio Songhua e se ergue a cidade de Heilongjiang. Parece desértico. De Ulan Bator, capital da Mongólia, até a orla atlântica do deserto do Saara, a feição geográfica é a de um grande deserto com matizes. Sabemos muito bem que a Terra sofreu um ressecamento nesses últimos 12 mil anos de Holoceno. De grande área verde, o Saara e a península arábica se transformaram em desertos. As estepes da Ásia Central também estão em franco processo de desertificação. A quase totalidade da Austrália tem a aparência assustadora de um deserto em seu interior.

Mapa do rio Songhua, bacia do Amur

Sabe-se que o Saara caminha para o sul, em direção a Kalaari, outro deserto. Já existem manchas muito secas entre ambos. Por mais que o Saara sofra a influência da grande massa aquática do mar Mediterrâneo, ela não está sendo suficiente para contrabalançar a secura provocada pelas mudanças climáticas em toda a orla mediterrânica. Todo verão no hemisfério norte, ultimamente, tem sido marcado por incêndios na Turquia, na Grécia, na Itália, na Espanha e em Portugal. Nem mesmo o sul da França escapa desses incêndios e a Inglaterra viveu temperaturas recordes no verão de 2022.

Não se trata mais de fenômeno natural. A Terra está mais quente e mais seca por ações humanas coletivas num mundo globalizado pela economia de mercado. O clima do Holoceno criou áreas secas, como as savanas, estepes e desertos. O modo de produção capitalista está ampliando tais áreas. Imaginemos uma grande área seca – quase desértica – entre os oceanos Pacífico e Atlântico, atravessando a Ásia e a África, com efeitos sobre a Europa mediterrânica. Examinemos um mapa da desertificação no mundo. Na América do Sul, a área seca se estende na cordilheira dos Andes, onde fica o deserto de Atacama, o mais seco do mundo; no Nordeste brasileiro, no bioma da Caatinga. Trata-se do bioma naturalmente mais seco do Brasil, mas que está ampliando sua área pela mão do Ocidente. Mesmo com a transposição do rio São Francisco, o processo de desertificação não parece ceder.

Na América do Norte, a área seca se estende de Oaxaca, no sul do México, até a Colúmbia Britânica, no Canadá. Ela acompanha a orla do oceano Pacífico e se torna mais seca na costa oeste dos Estados Unidos. Agora, a secura se estende para o centro do Brasil, no Pantanal, no Cerrado e no domínio Mata Atlântica. O Cerrado foi invadido pelo agronegócio. O Pantanal perde água ano a ano. O que restou da Mata Atlântica está sendo removido.

A essa altura, existe mais área seca do que úmida. O mundo foi transformado num palheiro por ação humana. Basta um fósforo para produzir grandes fogueiras. A orla europeia do Mediterrâneo e a Califórnia estão aí como exemplos. Esta é a grande questão do nosso tempo. Nossa economia criou um mundo hostil à própria humanidade, sobretudo para a parte mais pobre dela, que é a maior. É uma questão mais importante que o movimento das mulheres, dos negros e dos gêneros não-heterossexuais porque todos respiram, todos bebem água, todos se alimentam, todos necessitam de vestimenta e moradia. Todos desejam saúde. E o mundo está mais vulnerável a doenças, à fome, a secas, a incêndios, a desastres, sobretudo nas cidades. Eis porque, há 50 anos, atuo na questão ambiental, sem ver luz no fim do túnel.

Áreas de deserto no mundo

A ficha que demora a cair

Sabendo-se que os mares representam ¾ das águas do planeta, não deveria haver preocupação com a escassez de água doce no mundo, que se acentua a cada ano. Bastaria dessalinizar a água do mar e usá-la para a agropecuária, a indústria, a geração de energia e o consumo humano. Mas a questão não é simples. Os custos da dessalinização são altos. Rios e lagoas são uma das maiores benesses da natureza. Os rios da Península Ibérica têm média e pequena extensão. O Tejo é o maior deles. É pouco menor que o rio Paraíba do Sul, no Brasil. A extensão do Tejo é de 1.007 km. A do Paraíba do Sul alcança 1.137 km. Além do Tejo, o Minho, o Lima, o Douro e o Guadiana têm nascente na Espanha e foz em Portugal, os dois Estados Nacionais que historicamente se formaram na Península. Pelo Acordo de Albufeira, assinado em 1998 e vigorando a partir de 2000, a gestão desses rios asseguraria água para os dois países. A Península já gozou de bom conforto hídrico. Mas a intensificação da agricultura, da pecuária, da urbanização, da energia e de outros usos compromete a própria sustentabilidade dessas atividades, pois a natureza tem limites.

Rio Tejo em Santarém pode ser atravessado a pé

Por outro lado, a economia de mercado, nascida na Europa, tornou-se global. Ela está promovendo a destruição de ecossistemas vitais na superfície terrestre e mudanças climáticas na atmosfera. A Terra está mais quente e seca. Os incêndios na Península Ibérica, no verão de 2022, foram os mais severos até hoje registrados. Eles também atingiram outras partes da Europa, da América do Norte e da Ásia. Até mesmo o centro da América do Sul foi assolado por ingente estiagem no inverno de 2022. Como alerta Rui Godinho, presidente da Associação Portuguesa de Distribuição e Drenagem de Águas, as altas temperaturas, as secas e os incêndios criaram uma realidade sistêmica. Ou seja, estrutural. E ela não é natural, senão que produzida por ações humanas. O Secretário Geral da ONU, António Guterres, alertou em recente discurso que o desenvolvimento sustentável tem sido um conceito muito usado e pouco praticado. A meu ver, não basta apenas um entendimento entre Espanha e Portugal para a distribuição de água equitativa e justa para os dois países, que estão na iminência de uma guerra não violenta em torno do recurso. Entendo que é preciso ir além da distribuição desse líquido vital. Existem muitas represas e albufeiras (reservatórios) nos rios ibéricos. Do maior ao menor. Os campos e a urbanização avançaram muito sobre os ambientes nativos. Os dois países se tornaram muito sedentos. Creio ser preciso repensar a relação dos ibéricos com os rios. Recuperar os ambientes nativos junto a eles. Substituir progressivamente e sempre que possível as represas por reservatórios nas margens, e não no leito dos rios. A crise é estrutural. Tende a se aprofundar. As medidas para sua reversão devem também ser estruturais. Não apenas países periféricos enfrentam crises hídricas geradas pelos próprios humanos, mas também os chamados países desenvolvidos.

A fala da natureza

Desde que os registros climáticos começaram a ser efetuados, o hemisfério norte viveu, em 2022, o mais quente e seco verão da fase climática iniciada no século XIX. A única fase na história da Terra em que as condições climáticas vêm sendo alteradas por ação humana coletiva dentro de um sistema econômico regido pelo mercado e atualmente globalizado. Os regimes políticos podem variar, mas a economia parte do princípio segundo o qual a natureza é ilimitada em sua capacidade de fornecer matéria e energia e em sua capacidade de absorver resíduos oriundos do processo produtivo. O resultado dessa concepção, colocada em ação e cada vez mais acelerada, é a crise ambiental também global vivida por cada país. A seca e os incêndios varreram o sul da Europa e as temperaturas elevadas alcançaram a Grã-Bretanha. Eles assolaram a América do Norte e grande parte da Ásia. Até mesmo na América do Sul, em pleno inverno, a seca afetou profundamente o interior do continente. Ao mesmo tempo, chuvas inclementes inundaram o Paquistão. Desenvolvimento sustentável é um conceito muito utilizado por governantes, empresários e acadêmicos. Ele está ganhando terreno entre o povo. Mas, na verdade, como acentuou António Guterres, Secretário Geral da ONU, em recente discurso, estamos caminhando velozmente para o Antropoceno, outro conceito discutível. Na verdade, as atividades humanas coletivas estão aprofundando a crise ambiental da atualidade. Secas, incêndios e enchentes mais intensos vão se tornar cada vez mais comuns. A questão ambiental ganha, assim, contornos políticos progressivamente mais acentuados. A natureza deixa de ser objeto para se tornar sujeito de história.

Enchentes no Paquistão em 2022

Bodas de Prata

– Querida, eu queria lhe fazer uma surpresa, mas não estou aguentando guardar o segredo. De qualquer maneira, você saberia de tudo antecipadamente. Fiz reservas no hotel de Ribadavia, lugar em que passamos nossa lua-de-mel.

– Que surpresa maravilhosa, amor! Festejarmos nossas bodas naquele lugar maravilhoso que visitamos há 25 anos. Vieram os filhos e temos até um neto. Será que Ribadavia continua linda?

– Parece que nada ou pouco mudou naquela cidade medieval, na província de Ourense, na comunidade autônoma da Galícia, região da Espanha. Riba d’Avia, se bem me lembro, tem esse nome por ter se erguido na margem esquerda do rio Avia. A cidade chegou a ser mesmo a capital do reino da Galícia na Idade Média.

– E aqueles prédios, aquela muralha, aquele riacho lindo no meio de uma floresta tipicamente europeia, com aquelas pequenas barragens que embelezam mais ainda o ambiente?

– É o regato de Maquiáns, que abastece o local. Lá, eles chamam de regato o que nós chamamos de riacho. O Maquiáns desemboca no Avia, que desemboca no rio Minho, lá chamado de Miño, que desemboca no mar. Fiz a reserva em janeiro desse ano exatamente no hotel em que passamos a lua-de-mel.

– Amor, chegamos. A cidade parece que não mudou. Continua ainda com aquele aspecto medieval. Parece que nem o número de habitantes aumentou ou diminuiu.

– O que a senhora disse? A cidade está vivendo problemas de abastecimento de água? Os moradores e os hotéis foram obrigados a fazer racionamento? Por que? O calor e a seca? A água também está sendo importada de outros lugares? E o riacho que abastece a cidade? Secou? Como secou aquele riacho lindo? Se fosse no Brasil, nós entenderíamos, mas aqui, num país desenvolvido da Europa… De fato, está muito quente aqui. Parece até Brasília, de onde viemos.

– E agora, amor? O que faremos?

– Ela disse que o governo está providenciando a mudança de captação para o rio Avia, mas que ele também está sofrendo problemas de seca. O mesmo acontece com o rio Minho. Com cinco barragens, segundo ela, o rio tem uma sequência de lagos e filetes de água. Ela nos informa que muita coisa mudou na Galícia e na Europa. Está explicando que o verão de 2022 está castigando o continente. O sul da Europa está em chamas. Os incêndios invadem a França. O calor está insuportável na Inglaterra. A nascente do rio Tâmisa secou, o mesmo acontecendo com o rio Pó.

– Poxa! Ninguém nos avisou sobre essas mudanças. Os jornais e as TVs não tocaram no assunto. Se tocaram, foi muito pouco. Eu pensei que a seca só atingia o Brasil. E agora?

– Ela diz que tem 23 anos. Que não conheceu esse ambiente que nos encantou há 25 anos.

– Você tem as fotos? Mostra pra ela.

– Ela tem muitas fotos aqui no Hotel. Disse que agora a situação está assim: no verão, as secas se agravam ano a ano. Quando chove, formam-se enxurradas nos rios. Mas nada fica. Os pequenos e românticos rios se transformaram muito e perderam o encanto.

Regato de Maquiáns

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