Animais Extraviados

Por Arthur Soffiati

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04/07/2022

Arthur Soffiati

Intelectual por vocação e ofício, ecólogo militante, pioneiro da área de História Ambiental no país

Dramas humanos e animais

Entre a vida e a morte, há gradações. A morte é sempre o fim dos prazeres e dos sofrimentos terrenos. Ela iguala todos os seres vivos e, de modo geral, todos os não vivos. Mas a vida pode ser vivida total ou parcialmente com prazer ou sofrimento. Nobres e ricos têm mais condições de viver bem do que pobres. Mas há pobres que atravessam a vida com estabilidade. A normalidade de uma pessoa não é ser bela ou feia, conceitos relativos, mas sadia, em família, numa pátria.

Em estado de anormalidade, o ser humano pode enfrentar fome, falta de moradia, falta de emprego, doença e outras carências. O desterro forçado por condições adversas é um dos sofrimentos humanos. Não contar com as condições mínimas de existência. Ser retirado compulsoriamente de sua pátria, como aconteceu com africanos escravizados e deportados para outras terras. Toda a escravidão em qualquer época, praticada por qualquer povo sobre outro, é aviltante e dolorosa.

A migração forçada por fome, doenças, guerras e crise ambiental é também dolorosa, como acontece com muitas pessoas obrigadas a atravessar águas perigosas em embarcações precárias para tentar sobreviver em outras terras, como o que está acontecendo com os migrantes dos países pobres da África, Ásia e América para países ricos.

Esse drama doloroso acontece também com animais, que, embora não sabendo o que lhes acontece (partindo da suposição ainda não bem fundamentada de que eles não têm consciência), são capturados e levados vivos para ambientes hostis ou diferentes dos seus ambientes originários. Se não pensam, eles sofrem, como afirmou o filósofo utilitarista Jeremy Benthan.

Amputações

Você – mulher ou homem – vai a um salão de beleza pintar as unhas das mãos e dos pés. Em vez disso, a manicure lhe arranca as unhas. Não contente, ela também lhe corta as falanges, aquele último ossinho, sem o qual a unha não volta a crescer. Nos Estados Unidos, esta amputação é praticada em gatos para que eles não representem perigo para crianças e adultos. Felinos têm unhas retráteis. Com elas, os animais demarcam território e liberam, substâncias químicas que produzem sensação de bem-estar: os ferormônios. Esta extirpação recebe o nome técnico de onicectomia. Existem ainda a caudoctomia (corte da cauda de cães), conchectomia (corte das orelhas) e cordectomia (corte das cordas vocais), todas com o objetivo de padronizar as raças de animais. No Brasil, todas elas são proibidas desde 2008 porque, se o animal nasce com cauda ou orelhas compridas, elas são características suas. O veterinário que as pratica pode ser advertido e até mesmo cassado. Se é para mutilar o animal, não o crie. Se você tem um bebê em casa, sabe que ele quebrará alguma coisa ou cairá e se machucará. Nem por isso, você o aprisiona numa jaula (embora haja quem faça isso). Os tempos estão mudando e não admitem esse tipo de crueldade.

Animal melancolicamente extraviado

Uma reportagem de jornal mostrou o drama de um animal, embora minimizado por especialistas. Ela escondia a triste trajetória de um lhama, animal de origem andina, pastando entre carneiros e ovelhas, num terreno baldio, nos arredores de uma cidade brasileira. O traficante e carcereiro não foi localizado.

Reflito. Como, nos dias de hoje, alguém pode se intitular dono de um ser vivo, como se ele fosse um escravo comprado e retirado do seu continente, do seu país, da sua aldeia, da sua família e colocado em contexto completamente diferente e obrigado a trabalhar? Os animais continuam a ter dono. Eles são artigos de comércio. Como os escravos, eles são retirados do seu contexto e transportados para outro. A grande maioria é engordada para morrer.

Esse lhama passa a ter uma história pessoal, na medida em que é retirado compulsoriamente do seu ambiente e colocado noutro. O animal passa a viver um drama semelhante ao dos migrantes. De repente, ele se encontra entre animais de origem europeia, num clima e numa região muito distintos do ambiente em que naturalmente habita. Trata-se de uma trajetória dramática vivida de forma inconsciente. Ele não sabe (julgamos nós em nossa prepotência) o que lhe aconteceu. Ignora os motivos de sua imigração. Ignora que está impossibilitado de procriar, seja macho ou fêmea. Ignora a situação em que vive, com animais desconhecidos a seu redor.

Essa é a trajetória de muitos outros animais. Trata-se de um drama que muito comove.

Aniversário do pangolim

Hoje, todos os dias do ano são dedicados a alguma coisa ou a alguém. O dia 16 de fevereiro foi dedicado a uma pessoa muito especial: o pangolim. Na verdade, não é bem o aniversário dele, mas um dia consagrado à família dos pangolins. Ao todo, são oito espécies: 1- pangolim chinês, 2- pangolim malaio, 3- pangolim do cabo, 4- pangolim filipino, 5- pangolim-da-barriga-branca, 6- pangolim indiano, 7- pangolim-gigante-terrestre e 8- pangolim da barriga preta. Não parecem, mas eles são mamíferos que formam a ordem Pholidota, muito antiga e com representantes fósseis. São animais tímidos e solitários. Eles têm o corpo cobertos de escamas e se alimentam de formigas e cupins com sua língua mais comprida que seu corpo. O pangolim se parece com o tamanduá. Enrola-se como o tatu- bola, quando ameaçado, e não têm dentes.

Uma sina os persegue: certos povos, como os chineses, por exemplo, acreditam que sua carne é afrodisíaca ou que produz leite nas mulheres que estão amamentando. Inclusive, pesquisas recentes levam a crer que o Novo Coronavírus 2019 – oficialmente denominado de Covid-19 – tenha vindo dele. O vilão dessa história não é o pangolim, mas o homem novamente, pois invade seu ambiente, captura o animal e o vende por preços exorbitantes. A ingestão de sua carne pode transmitir o vírus. Esse contato promíscuo com animais silvestres é muito comum na China. Hoje, as oito espécies de pangolim são consideradas as mais traficadas no mundo, estando todas elas criticamente ameaçadas de extinção. Cerca de 100 milhões de exemplares são retirados anualmente do seu ambiente na China e no Vietnã. Metaforicamente, o pangolim está se vingando de quem o extermina.

Mas por que um historiador como eu deveria se preocupar com o pangolim, animal tão estranho e muito desconhecido? Os historiadores clássicos nem sabem que ele existe, pois só o ser humano lhes interessa. Como sou historiador ambiental, estudo as relações dos grupos humanos com a natureza. O pangolim me interessa muito. Ele é nosso irmão e nem conhecemos esse irmão estranho.

Animais pouco conhecidos

“Acaso você é um pato, com esse bico?”. “Não está vendo que, além do bico, tenho quatro patas?” “Mas os dedos de suas patas são ligados por membranas. Acaso você é uma lontra?”. “Você já viu lontra com bico de pato?” “Então, com essa cauda, você deve ser um castor que não deu certo”. “Você já viu castor com bico de pato?” “Com quatro patas, você poderia ser um réptil. Ave não é porque as aves têm duas patas”. “É, mas você vai estranhar muito quando eu lhe disser que, além do bico, das membranas e da cauda, meu corpo tem pelo e não escamas ou couro ou casco. E, além disso, eu boto ovo e amamento meus filhotes.” Meu Deus, você é uma fraude, uma montagem, um animal fake!”. “Foi o que disseram os cientistas europeus ao me verem pela primeira vez. Hoje, sou raro, mas existo.”

“Sou réptil, ave e mamífero. Estou numa posição intermediária. As fêmeas de vocês, humanos, deviam ter conservado minhas características. Tenho apenas um orifício por onde faço as minhas necessidades e por onde sou fecundada. Meu ovo sai por aí também. Se as fêmeas humanas botassem ovo, os machos poderiam ajudar a chocar, embora meu macho não faça isso. Mas vocês dizem ser conscientes. Se o casal humano não quisesse chocar, poderia colocar o ovo numa chocadeira pública. Se tivesse dinheiro, poderia comprar uma chocadeira particular. Se não quisesse o filhote, poderia fazem um omelete. Para vocês, humanos, comer um ovo cozido não lhes dá a impressão de estar comendo uma galinha. Comer um ovo de mulher não lhes daria a impressão de estar cometendo aborto ou canibalismo.

“Prazer, vocês me batizaram de ORNITORRINCO. Vivo na Austrália e na Tasmânia, parte do mundo onde existem os mais bizarros animais, segundo vocês. Estou ameaçado de extinção porque vocês não respeitam meus limites. Com o fogo que assolou a Austrália em 2019, a situação da minha espécie deve ter se agravado”.

Javali

Antes da chegada dos europeus à América, já existiam parentes do porco em estado nativo. Não sei se a origem da queixada e do cateto é africana, tendo desenvolvimento próprio depois que a América se separou da África. Sei que o porco foi domesticado no velho mundo. Alguns sustentam que ele foi o primeiro animal a ser domesticado pelas sociedades humanas.

O javali continuou selvagem e alvo de caçadas. Ele foi trazido da Europa e se disseminou. Em terras do Brasil, ele acabou cruzando com o porco doméstico e deu origem ao javaporco.

Considerado uma praga para a lavoura, o javali virou alvo de caçadas liberada. Um projeto de lei do deputado estadual de São Paulo Ricardo Trípoli (PV) proibiu a caça do javali e do javaporco. O governador Márcio França sancionou o projeto, que se converteu em lei. No entanto, a Federação da Agricultura do Estado de São Paulo pressionou o governador para continuar a caça. O governador regulamentou a lei, permitindo o abate com justificativa.

Estranho tanto os caçadores quanto os que combatem a caça. Alguns animais foram retirados de seus ambientes nativos e foram domesticados para servir aos grupos humanos. Várias espécies são criadas para o abate, como bovinos e galiformes. Há mesmo abate de cães e cavalos. Parece que esse abate não é muito discutido pelos protetores de animais. Tem-se exigido o abate humanitário. Não sei como ser humanitário um ato que tire a vida. Mas admito que, se é para matar, que seja sem sofrimento.

Quanto à caça, ela não cabe mais nos nossos dias, a não ser em casos excepcionais, como o abate para estrito consumo. No caso do javali e do javaporco, o governo federal deveria se incumbir de retirar o animal da vida livre e não permitir a prática da caçada, que estimula o instinto de destruição.

 

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