Os lobos da Galícia e a história dos animais

Por Arthur Soffiati

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07/05/2022

Arthur Soffiati

Intelectual por vocação e ofício, ecólogo militante, pioneiro da área de História Ambiental no país

Leio diariamente jornais locais, de outras cidades próximas, dos estado do Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais e São Paulo. Leio também um jornal de Portugal e um da Galícia, na Espanha. Leio até um jornal em Português de Macau, China, cidade que foi colonizada por Portugal. Eventualmente, leio outros. Ler um jornal não significa começar na primeira letra da primeira página e terminar na última da última página. Todo mundo seleciona as notícias que lhe interessam. Minha preferência recai sobre assuntos estruturais. Uma guerra longa e surda que não costuma merecer atenção da imprensa, mas que, de tempos em tempos, aparece nas folhas. Questões ambientais que só merecem atenção quando se tornam agudas e assuntos científicos.

Gosto de escrever sobre as notícias que me despertam atenção. Nem sempre posso acrescentar mais informações sobre elas, mas faço reflexões. Minha pauta atual mostra-se extensa.

Tenho de escolher um tópico. Acabei ficando com a situação dos lobos da Galícia, tema que nem mesmo os jornais galegos enfocam mais atentamente e que não deve interessar a muitas pessoas.

A Galícia é uma comunidade autônoma a noroeste da Espanha. Ela conta com uma língua própria de origem latina, embora o espanhol seja a língua mais falada. A cidade mais conhecida da Galícia é Santiago de Compostela. Estive lá e em Vigo, outra cidade galega, no fim de 2019. Apaixonei-me por suas paisagens e sua cultura, que eu conhecia à distância. Escrevi sobre seus rios e devo ainda artigos sobre as impressões que a sua cultura me causou.

Além das enchentes que ocorreram no inverno de 2021 e que talvez continuem ocorrendo, inteirei-me da situação dos lobos. Em quase todos os países da Europa ocidental, os lobos foram exterminados. Na Inglaterra, o lobo foi extinto em 1680. Na Irlanda, ele desapareceu cerca de um século depois. Antes do século XX, os lobos já haviam sido exterminados na França e na Alemanha. A modernização da economia rural é incompatível com o lobo vivo. Lobo bom é lobo morto, como os índios dos Estados Unidos e de toda a América.

Na Espanha, os lobos se concentraram na Galícia e hoje representam uma relíquia do mundo natural, animal e ecológico. Ele povoa o imaginário das pessoas dependendo da sua condição social. Para o pensamento cristão, ele representa o mal. Existem muitas lendas sobre eles, como se fossem pessoas ardilosas, traiçoeiras e cruéis. Mas ele também desperta admiração. A maior concentração de lobos na Europa está na Galícia. Mas não sem problemas. As relações da sociedade galega com eles é de ódio e de proteção. Para os pecuaristas, o lobo é uma praga que ataca seus animais de criação. Só há dois destinos para o lobo: tornar-se vegetariano, o que é uma ironia, ou ser eliminado. Para os ambientalistas, o lobo deve ser protegido como uma preciosidade da Galícia. Na ditadura de Franco, o lobo foi incluído na lista da “Junta para Instinçom de Animais Daninhos”. Salazar fez o mesmo em Portugal. Não direi que esse pensamento é próprio das ditaduras, pois, em relação aos animais que nos incomodam, todos somos ditadores. A cultura ocidental capitalista, hoje globalizada, é hostil aos animais, sobretudo os considerados “nocivos”.

O lobo foi acuado nas serras de Gallaecia e em Serra Morena, nas décadas de 50 e 70. Com o retrocesso das atividades agrárias e a recuperação natural ou antrópica dos bosques, o lobo começou a recolocar o focinho de fora na Espanha e na Itália, mas agora volta a causar problemas para os pastores dessas terras. Trata-se do Canis lupus signatus, pertencente à família do grande lobo das lendas. É menor que o famoso lobo mau da Chapeuzinho Vermelho ou de Pedro e o Lobo. Trata-se de um animal esquivo e tímido como o nosso lobo Guará. Seu pelo tem cor irregular. Um macho adulto chega a, no máximo, 70 cm do chão, com cerca de 1,80 m do focinho à ponta da cauda. Suas mandíbulas são fortes, tratando-se de um grande andarilho.

Na Galícia, em 2006, aprovou-se uma lei de proteção ao lobo, o que representa a nova postura de certa parte da humanidade (ecologistas e veganos) em relação à natureza nativa. Porém, essa lei ainda não agradou os defensores do animal. Calcula-se que hoje existam 700 exemplares de lobo na Galícia. Mas o lobo vem sofrendo um novo ataque. Acusado de atacar rebanhos, ele tem sido morto abertamente por tiros ou disfarçadamente com veneno pelos agropecuaristas. O governo tem de lidar com a dupla pressão que vem dos campos e dos cientistas e ecologistas.

Está em voga historiadores se dedicaram a plantas e animais. Eles falam em história das plantas e dos animais. Geralmente, são estudiosos de gabinete. Existirá essa história? Num universo impregnado pelo tempo cronológico, seus componentes não vivos e vivos têm história. Talvez mesmo antes do big-bang houvesse história num universo pretérito. Essa história é vivida pelos seres não vivos e vivos sem que eles se deem conta dela. É a história o Universo, dos astros, da Terra, dos seres vivos, já que nada é fixo. O vegetal e o animal vivem num meio que se transforma e os transforma ou os extingue.

Quando os humanos emergiram, passou a existir uma outra história, que só será criada recentemente: a história das relações humanas com vegetais e animais. A maneira mais suave dessas relações é a de proteção das espécies. A ciência (desenvolvida entre várias culturas e não apenas no ocidente) já dá um passo adiante, pois nem sempre se trata de estudar uma espécie sem mutilá-la. Rousseau não gostava da zoologia porque ela implicava em carnificina, mas gostava da botânica pela ausência de sangue. Todavia, ele não hesitava em cortar vegetais e herborizá-los para a sua coleção (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os devaneios do caminhante solitário. Brasília: EdUnB, 1986). Indo mais adiante ainda, plantas e animais sempre são representados mentalmente. A cicuta é representada de forma negativa pelo seu veneno.

Em sua viagem terrestre pelo Oriente, no século XVI, frei Gaspar de São Bernardino anota: “Aqui vi umas figueiras a que chamam da Índia ou Pomum paradisi cujo fruto afirmam muitos ser o que foi vedado a nossos primeiros padres; desta opinião é Santo Agostinho, Moisés Berzefa, bispo da Síria (…), Nicéforo Calixto, Santo Ambrósio e todos os rabinos.” (Apud.

GRAÇA, Luís. A visão do Oriente na literatura portuguesa de viagens: os viajantes portugueses e os itinerários terrestres (1560-1670). Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1983). A fruta é a banana, que recebeu o nome científico de Musa paradisica. Ela é originária da Índia e acredita-se que foi a fruta oferecida pela serpente para Eva e Adão no Paraíso. A maçã também recebe essa pecha. Tais representações não fazem parte da história dessas duas plantas, mas da história das relações das sociedades humanas com elas.

Recebo agora a informação de que a corrida de galgos no Rio Grande do Sul foi proibida por decreto do governador do Estado. Um galgo corre, mas quando sente necessidade. O galgo posto a correr em pistas para vencer corridas é uma prática humana, assim como as brigas de galo, as touradas, as brigas de canários, as corridas de cavalo e até as brigas de insetos. Essas práticas são provocadas por humanos que se aproveitam de certos hábitos animais. Não se trata da história dos animais e sim da história das relações dos grupos humanos com animais. Entre os jainistas e lamaístas, andava-se com uma vassoura para afastar insetos a fim de que não morressem sob pés humanos. Os lamaístas protegiam invertebrados por entenderem que todo animal tem alma que pode passar para um humano. Já os cristãos são carnívoros. Os judaístas e muçulmanos também, com a exclusão de certos animais considerados impuros.

Assim também os lobos. Por um lado, eles merecem admiração por serem monogâmicos temporários, organizarem-se em grupos, caçarem de forma colaborativa, cuidarem bem dos filhotes, serem inteligentes. Eles evitam a presença humana e as áreas de criação de gado. Mas, sendo territorializados, eles atacam os animais que invadem sua território. O extermínio dos lobos favorece a proliferação de javalis, que causam prejuízos à lavoura ao fuçarem as terras plantadas. A igreja católica usou a figura do lobo de forma ambígua. Ora, ele era a imagem do demônio. O lobo – dizia-se – só comia a parte esquerda das suas vítimas. O lado esquerdo tem uma longa tradição negativa, como mostra Luís da Câmara Cascudo (CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1962). Homens amaldiçoados se transformavam em lobos. Eram os lobisomens. Essa caraterização ilustra bem os dois lados do homem. A mulher é mais identificada com os felinos. Essas imagens ganharam o cinema. A prova

de que o bem é mais poderoso que o mal está representada na imagem de São Francisco de Assis amansando um lobo.

Entre os celtas, o lobo é muito parecido com o homem. Daí, imagens mistas de lobo e de homem simbolizando coragem e bravura. Os lobos são indiferentes a tudo o que os humanos dizem sobre eles. Daí não existir uma história dos lobos nem dos animais, desde que seja história sociocultural. O que existe é uma história da relação das sociedades humanas com os lobos, que se traduz no comportamento e nas representações. Mas se os lobos, os minerais, os vírus, as bactérias, os protozoários, os fungos, os vegetais e os animais são protagonistas da história humana desde que os hominídeos emergiram como grupo na natureza. Podemos fixar a origem desse protagonismo no Homo habilis, em torno de um milhão e trezentos mil anos. Contudo, durante muitos séculos, os historiadores no seu sentido amplo, excluíram os seres não-humanos desse protagonismo. Agora, que eles começam a reconhecê-los, valem-se de expressões simplistas, como história dos animais e dos vegetais.

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