Baiacu

Por Arthur Soffiati

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27/10/2021

Arthur Soffiati

Intelectual por vocação e ofício, ecólogo militante, pioneiro da área de História Ambiental no país

“Nome dado, no Brasil, a várias espécies da família diodontídeos e tetradontídeos. Todos têm vísceras venenosas, especialmente o fígado e as ovas maduras […] A carne de algumas espécies é comestível, mas os riscos que se corre não compensam o prazer gastronômico.” É o que informa Raul Pereira em Peixes de nossa terra (São Paulo: Nobel, 1986). A palavra “tetradontídeos” deriva do grego e significa quatro dentes.

Hitoshi Nomura, em Dicionário dos peixes do Brasil (Brasília: Editerra, 1984), resume-se a informar, no verbete “baiacu”, que é “nome comum às espécies marinhas dos gêneros Chilomycterus, Diodon, Lactophrys, Lagocephalus e Spheroides”. Mas em seguida apresenta uma lista detalhada das espécies que ocorrem no Brasil: baiacu-arara, baiacu-bubu, baiacu-caixão, baiacu-cofre, baiacu-da-água-doce, baiacu-de-chifre, baiacu-de-espinho (duas espécies), baiacu-dondon, baiacu-franguinho, baiacu-graviola, baiacu-panela, baiacu-pinima e alguns sinônimos. O autor descreve quase todas as espécies encontradas no Brasil.

Os representantes do grupo vivem nos oceanos Atlântico, Pacífico e Índico. São muitos os encontrados no Brasil, tanto no mar (a maioria) quanto em água doce (poucas). Geralmente, as de água doce vivem nos estuários, ambientes salobros em foz de rios no mar. Elas nadam no manguezal. Todas as espécies se alimentam de algas, moluscos, crustáceos e outros invertebrados.

Deixando de lado as pequenas diferenças entre espécies, o baiacu é um peixe muito conhecido. Ele morde isca e vem no anzol como peixe indesejado. Seu corpo incha como um balão. Por essa característica, é conhecido também como peixe-sapo. Ele ronca. Cheio, o pescador costuma pisar nele ou chutá-lo para que estoure. O baiacu tem história própria. Além disso, ele entra na história humana, seja como objeto de conhecimento pragmático de pescadores e curiosos, seja como comestível, seja como objeto de conhecimento científico.

No excelente Dicionário histórico das palavras portuguesas de origem tupi (São Paulo: Melhoramentos; Brasília: EdUnb, 1999), Antônio Geraldo da Cunha faz uma longa lista de autores do Brasil colonial que escreveram sobre o baiacu, entre eles Pero de Magalhães Gandavo, Fernão Cardim, Gabriel Soares de Sousa, Ambrósio Fernandes Brandão, Vicente do Salvador (1627), Cristóvão de Lisboa (1631), Gregório de Matos (1696), Francisco Antônio de Sampaio (I789). Deles, selecionemos apenas os que se referem à comestibilidade do peixe.

Pero de Magalhães Gandavo, em História da província de Santa Cruz (Cadernos de História vol.1. São Paulo: Parma, 1979), escreve: “Alguns índios da terra se aventuram a comê-los depois que tiram a pele e lhe lançam fora por baixo toda aquela parte onde dizem que tem a força da peçonha. Mas sem embargo disso, não deixam de morrer algumas vezes.” Gabriel Soares de Sousa, no Tratado descritivo do Brasil em1587 (3ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938) registra que o “Baiacu é um peixe que quer dizer sapo, da mesma cor e feição, e muito peçonhento, mormente a pele, os fígados e o fel, ao qual os índios com fome esfolam e tiram-lhe o peçonhento fora, e comem-nos.”

Por sua vez, Fernão Cardim observa: “Toda peçonha tem na pele, e tirando-a, come-se; porém comendo-se com a pele mata.” (Tratados da terra e gente do Brasil. São Paulo: EdUsp, Belo Horizonte: Itatiaia, 1980). Frei Vicente do Salvador reforça os cronistas anteriores: “se o esfolam bem, se comem assados ou cozidos como qualquer outro peixe.” (História do Brasil – 1500-1627. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982). Frei Cristóvão de Lisboa disse que: “Baiacu é um peixe de um palmo de comprido e muito perigoso de comer para quem o não sabe com certeza e para quem o não conhece; quem quiser comer há de meter a pele fora, e as tripas, e fel, e lavá-lo muito bem.” (História dos animais e árvores do Maranhão. Rio de Janeiro: Alhambra, 1985).

Baiacu em desenho de Frei Gaspar de Lisboa (História dos animais e árvores do Maranhão). Visto por baixo, ele o representa como sapo, pois esse é um dos seus nomes.

As primeiras observações de caráter cientifico da época foram feitas por naturalistas durante o domínio holandês (1630-1654), principalmente durante o governo de Maurício de Nassau (1637-1634). Dentre eles, o médico Guilherme Piso destacou-se com sua História natural e médica da Índia Ocidental. (Instituto Nacional do Livro: Rio de Janeiro, 1957), publicada em 1649. Ele anota o baiacu com o nome de guamaicú-atinga, também conhecido como soprador porque “ao ser tirado das águas, emite um ronco e se incha à maneira de uma bola, inchando e desinchando no mesmo instante […] É muito procurado e servido como alimento pela plebe ignorante, com grande risco de vida, não sendo conveniente libertado do folículo do fel. Em uma hora, um pedacinho dele, mesmo do tamanho de um grão-de-bico, quando ingerido, produz sintomas tão horrendos que logo escurecem os olhos, a mente vacila, a língua entorpece, segue-se tremor dos membros e suores frios, todas as faculdades se relaxam e cessam, e em seguida aniquiladas pelo veneno.” Descreve ainda duas espécies: o guamaicu-guará e o guamaicú-apê. Acresce, quanto ao último, que “A carne é tão maligna que, comida logo após a cocção, transtorna a mente e torna as vítimas semelhantes aos ébrios e loucos […] Porém cozido e guardado uma noite inteira, pode comer-se sem risco, mas tem pouca carne e por dentro é quase côncavo.”

Baiacu, segundo Guilherme Piso

No século XX, Alberto José de Sampaio registrará: “baiacu: peixe tóxico: tirado o fígado, é alimento inofensivo.” (A alimentação sertaneja e do interior da Amazônia. Série Brasiliana vol. 238. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1936).

Retornando a Hitoshi Nomura, na obra já citada, há um esclarecimento interessante para a alimentação referente ao baiacu-arara: “espécie marinha consumida no Espírito Santo (Vitória, Guarapari, Piúma, Benevente) na forma de muqueca. Começou a aparecer nas mesas capixabas em 1941, com a escassez de outras espécies. Em 1943 sua captura chegou a 19.700 kg.” Na famosa muqueca capixaba, não só são empregadas espécies nobres de peixe, mas também o baiacu. Pelo menos foi.

Baiacu-arara, Desenho de R.D. Secchin

Se não aqui, no Japão e na Coreia, o baiacu é uma fina iguaria. Sua carne tem o nome de fugu. Mas só profissionais treinados e autorizados podem prepara o prato. É preciso saber extrair a tetrotoxina, o veneno do baiacu. Ela é, aproximadamente, 12000 vezes mais mortal que o cianureto. Em geral, ela se concentra no fígado. O órgão tem de ser retirado com muito cuidado. Rompendo-se, ele pode contaminar toda a carne e inviabilizá-la, além de colocar em risco a vida de pessoas. O animal que predar o baiacu morre imediatamente. É a defesa da espécie. Morre mas mata.

Ossos de baiacu foram encontrados no Japão, associados à alimentação humana, datando de mais de 2 mil anos. O mesmo aconteceu na ilha de Santana, no estado do Rio de Janeiro, diante da foz do rio Macaé, segundo uma pesquisa arqueológica (Tania Andrade Lima e Regina Coeli Pinheiro da Silva. Zoo-arqueologia: alguns resultados para a pré-história da Ilha de Santana. Revista de Arqueologia 2 (2). Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, jul/dez de 1984). É de supor que alguns consumidores do peixe morreram até se alcançar o aprendizado no seu preparo. No Japão, o fugu custa caro.

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