História social do rio Itapemirim (IV)

Por Arthur Soffiati

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29/09/2021

Arthur Soffiati

Intelectual por vocação e ofício, ecólogo militante, pioneiro da área de História Ambiental no país

Século XIX

O bairrismo leva cada país, cada estado e cada município a buscar uma história singular para si. Não se pode entender a história da França, da Inglaterra, da Espanha, de Portugal e de outros países da Europa ocidental sem recorrer ao Império Romano, a àquilo que se denominava Cristandade Católica Romana no período de formação da Europa.

A história do Brasil está intimamente imbricada com a história da Europa Ocidental a partir da expansão marítima. A história de cada capitania, província e estado não pode ser entendida sem a história da Bahia e de Salvador, de Vila Rica/Ouro Preto e Rio de Janeiro. Espírito Santo e Rio de Janeiro estiveram muito próximos em termos históricos até o século XIX.

A colonização e a urbanização do sul do Espírito Santo começam na zona costeira do rio Itapemirim com uma sesmaria que se estendia da foz do rio ao limite com a capitania de Minas Gerais. Na prática, essa grande gleba de terra não foi colonizada antes do século XIX, assim como o Tratado de Tordesilhas, de 1492, garantia terras para Portugal na América do Sul que foram colonizadas a partir do século XVIII.

É bem verdade que as vagas notícias sobre minérios valiosos nas minas do Castelo estimularam aventureiros a se interiorizar, mas não a colonizar e urbanizar as terras altas do vale do Itapemirim.

Com a transferência da capital do reino português para o Brasil, em 1808, D. João promoveu a abertura dos portos às nações amigas e, com o Congresso de Viena, em 1815, muitos estrangeiros puderam entrar no Brasil como comerciantes, militares, naturalistas etc. Em princípio, franceses não eram amigos. As tropas napoleônicas invadiram Portugal. Os membros da monarquia e grande parte da corte tiveram de se deslocar para o Brasil com o insistente apoio da Inglaterra, que havia resistido ao Bloqueio Continental, em 1806.

Com a derrota definitiva de Napoleão e seu exílio na ilha de Santa Helena, em 1815, a França voltou a ser uma nação amiga de Portugal. Em 1815, um ano antes da elevação do Brasil a reino unido a Portugal e Algarve, chegou ao Brasil o militar francês, J.C.R. Milliet de Saint-Adolphe. Pouco se conhece de sua vida pessoal. Teria nascido em 1789, ano em que oficialmente se iniciou a Revolução Francesa? Teria sido perseguido depois de 1815 por admirar Napoleão?

Ele veio para o Brasil com seu filho Auguste e trabalhou como tipógrafo. Voltou à França em 1842 com muitas anotações sobre o Brasil. Em 1845, lançou o Dicionário Geográfico, Histórico e Descritivo do Império do Brasil, o primeiro do gênero, com quatro mil verbetes. Saint-Adolphe tinha uma curiosidade insaciável. Para satisfazê-la, viajou pelo Brasil colhendo subsídios a fim de empreender uma obra robusta para uma só pessoa em 26 anos num país muito desconhecido ainda.

Tomando por base os manuscritos de Saint-Adolphe, o baiano Caetano Lopes de Moura fez acréscimos e atualizações para a segunda edição, em português, do dicionário com as bênçãos de D. Pedro II (SAINT-ADOLPHE, J.C.R. Dicionário Geográfico, Histórico e Descritivo do Império do Brasil. Paris: Casa da Vª J.-P. Aillaud, Gullard e Cia, 1863). Num verbete do seu dicionário, ele informa sobre o rio. Noutro, sobre a vila de Itapemirim, que ele grafou Itapé-Mirim: “Itapé-Mirim. Vila pouco importante da província do Espírito Santo, cabeça da comarca de seu nome, 22 léguas ao sudoeste da cidade de Vitória. Teve princípio numa aldeia de índios cristianizados no fim do século XVI. Em 1754, Pedro Bueno e Balthasar Caetano Carneiro estabeleceram um engenho por de trás dessa aldeia, com uma capela que dedicaram a N. S. do Patrocínio, a qual gozou das prerrogativas de paróquia, desde o ano de 1771. Um alvará de 7 de junho de 1815, conferiu a esta povoação e aldeia o título de vila do Brasil, dando-lhe por patrimônio meia légua quadrada de terra, com condição de fazerem os moradores por sua conta a fábrica da casa da câmara, cadeia e mais acessórios municipais. O mesmo alvará assinalou-lhe por distrito o próprio terreno da freguesia. Está esta vila assentada na margem meridional do rio de seu nome, 4 léguas ao poente do monte Agá, e a meia légua do mar, e consta pouco mais ou menos de 80 casas cobertas de palha, situadas em redor de uma praça, onde se vê uma forca. Seu distrito confronta, ao norte, com o rio Piuma; ao ocidente, serve-lhe de limite a cordilheira dos

Aimorés; ao sul, o rio Cabapuana; e ao nascente, o oceano. Sua população é de 2.000 habitantes, pela maior parte de índios derramados em terras férteis, porém mal cultivadas”.

Não importa se, porventura, existem incorreções no verbete. O que interessa são as informações. Itapemirim começou como redução para a catequese de índios, tornando-se capela curada. Depois freguesia. Em 1815, foi elevada a vila. Portanto, o núcleo teve a trajetória normal de núcleos coloniais: capela curada, freguesia, vila e cidade. Não começou sendo logo cidade, como Salvador e Rio de Janeiro. Saint-Adolphe não registra o estatuto de cidade, pois essa elevação aconteceu bastante tempo depois de seus registros. Mas notemos a anotação de 80 casas de palha, como era muito comum na região costeira. A cobertura era mais importante que o material das paredes na classificação de uma moradia. A casa de palha resistiu por muito tempo.

Em 1815, saindo do Rio de Janeiro rumo a Salvador na primeira grande expedição científica europeia pela costa brasileira, o príncipe naturalista alemão Maximiliano de Wied-Neuwied fez um apontamento interessante na foz do rio Itapemirim: “O rio, no qual se viam alguns pequenos brigues ancorados, é muito estreito, mas comporta certo comércio de produtos das plantações, como açúcar, algodão, arroz, milho e madeira das florestas. Um temporal, que desabou na serra, veio mostrar-nos quão rápida e perigosamente sobem na zona tórrida; porque o rio se tornou logo tão caudaloso, que quase transbordou: aliás, tem sempre correnteza maior que o Itabapoana (WIED-NEUWIED, Maximiliano. Viagem ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia/São Paulo: EDUSP, 1989).

Lembremos que, em 1815, a cobertura florestal do sul do Espírito Santo era extensa. Cheias sempre ocorreram, mas sua capacidade destruidora foi acentuada por ação humana em dois séculos. O príncipe fala também em extração de madeira e na agricultura.

Três anos depois, em 1818, a foz do rio e a vila foram visitadas pelo naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire. Ele vinha do Rio de Janeiro em direção ao rio Doce, além de ter empreendido muitas outras excursões pelo Brasil.

Para ele, o rio Itapemirim era apenas um riacho. Levando-se em consideração os rios europeus, o Itapemirim seria um rio médio, já que o Paraíba do Sul e o Doce tinham o Reno como termo de comparação. O naturalista francês escreveu: “Estando a Vila de Itapemirim localizada à direita do riacho do mesmo nome e a fazenda do Capitão Francisco Coelho à margem esquerda, embarquei numa piroga, para atravessar a água. O riacho do Itapemirim está orlado de altas gramíneas e de arbustos do mais belo verde e se introduz por uma região plana e alegre, entrecortada de bosques e pastagens (SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Espírito Santo e rio Doce. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1974).

Ele enriquece o seu depoimento: “Sentado em minha piroga, divisava no horizonte a cadeia de montanhas em meio à qual se levanta o pico chamado Morro do Frade, e via a Vila de Itapemirim, que, constituída de pequeno aglomerado de casas cobertas de palha, não parece mais que uma aldeia.” De fato, a visão do espaço era mais aberta em 1818 e a vila de Itapemirim, como todos os núcleos populacionais da costa, constituía-se de casas com paredes de barro e telhados de palha.

“A Vila de Itapemirim está apenas em formação, mas o nome que tem, e que em guarani significa pequena pedra chata, foi dado a seu território pelos índios, provavelmente mesmo antes do descobrimento do Brasil, pois já encontramos citado no relato muito interessante de Jean de Léry, publicado por volta de meados do século XVI […] É possível que nesta parte tivesse havido choças de índios ou cabanas de portugueses. Somente em junho de 1811 foi que se deu a Itapemirim o título pomposo de Vila (Ibidem).

Havia no Brasil paisagens modificadas que podiam encantar um europeus exigente. Numa igreja que se erguia no alto de uma colina, ele admirou “Alegre planície (que) se estende de todos os lados e apresenta um conjunto encantador de pastagens, bosques e terrenos de cultivo.” Mas “A Vila de Itapemirim, se não tem hoje grande importância, está destinada a adquiri-la, por sua posição. A entrada do rio, estreita e difícil, não tem na verdade mais de oito a nove palmos de profundidade; mas tal volume de água é suficiente para embarcações que carregam 60 caixas de açúcar e, às vezes mais; e essas embarcações, podendo voltar até pequena distância da vila, apanham o açúcar, por assim dizer, à porta de várias fazendas.”

A navegação tornou-se mais problemática desde então. “Os terrenos que margeiam o Rio Itapemirim, sem terem a milagrosa fertilidade das terras dos arredores de Campos, devem ser considerados, entretanto, muito férteis, pois permaneceram 20 anos sem nunca descansar jamais e sem serem adubadas. Produzem, igualmente bem, arroz, feijão e

mandioca; mas é a cana-de-açúcar que interessa aos agricultores, pois sua cultura ocupa, principalmente, os habitantes da região. Na época da minha viagem, contei nove engenhos de açúcar nos arredores de Itapemirim, e várias outras colônias plantavam cana-de-açúcar sem ter moenda, remetendo sua colheita a qualquer proprietário de engenho, com o qual dividiam o produto”.

Cabe ressaltar que, nos séculos XVIII e XIX, as terras entre os rios Itabapoana e Itapemirim foram usadas para o desenvolvimento de economia agropecuária mais ligada a Campos do que a Vitória. Em 1855, quando Campos pleiteou a criação de uma nova província, sendo a capital dela, Itapemirim não só apoiou o pleito como pediu para ser incorporada à província capitaneada por Campos (SOFFIATI, Arthur. O movimento político de Campos em 1855. Vértices, v.14, n. Especial 1. Campos dos Goytacazes: IFF/Essentia, 2012).

“Os colonos das cercanias de Itapemirim cultivam algodão, mas para uso próprio. É justamente para o consumo da região que se planta arroz e feijão; todavia, não é raro que os agricultores venham a ter excedentes desses gêneros, que enviam para o Rio de Janeiro.” (Saint-Hilaire, op. cit). Era comum o plantio de produtos para consumo interno porque a compra deles onerava a população. No relatório do Marquês de Lavradio passando o vice-reino do Brasil a Luís Vasconcelos de Souza, fica bem claro a importância da produção de produtos para consumo (LAVRADIO, Marquês de. Relatório do Marquês de Lavradio, Vice-Rei do Rio de Janeiro, entregando o governo a Luiz de Vasconcellos e Sousa, que o sucedeu no Vice-Reinado. Revista Trimestral de História e Geografia ou Jornal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo IV, 2ª ed. Rio de Janeiro: Tip. de João Ignacio da Silva, 1863).

Ainda Saint-Hilaire com a palavra: “Atravessando os arredores de Itapemirim, fiquei admirado por ver tão grande quantidade de terras apropriadas à plantação de cebolas (…) Enquanto na quase totalidade do Brasil e na Vila da Vitória, por exemplo, esse vegetal só vinga à custa de cuidados e quando a terra está estrumada, aqui, ao contrário, ele se multiplica com extrema facilidade, e é no lugar um ramo de exportação muito importante. De Itapemirim fazem-se remessas de cebolas para o Rio de Janeiro, a Vila da Vitória e Campos…” (Op. cit).

Mais uma vez, nota-se a integração de um pequeno núcleo habitacional numa rede de relações grande. Por fim, Saint Hilaire registra em seu diário: “Essa foz (do Itapemirim) é uma parte formada pelas areias que as águas amontoou e (…) não resta às embarcações outra passagem além de um canal estreito e difícil de 8 a 9 palmos de profundidade.” O naturalista francês deixa Itapemirim em 4 de outubro de 1818 rumo a Vitória.

Em 1875, o naturalista brasileiro Manoel Basílio Furtado empreendeu uma excursão às bacias do Itabapoana e do Itapemirim. Ele deixou um relato valioso sobre a zona serrana dos dois rios, ainda pouco explorada. Os naturalistas europeus passaram pela costa, com algumas interiorizações, mas não no rio Itapemirim. Esse relato foi publicado em 1884, com o título de Itinerário da Freguesia do Senhor Bom Jesus do Itabapoana à Gruta das Minas do Castelo. Dele restou apenas um exemplar incompleto. As fotografias tomadas se perderam. Em 2016, a editora Essentia publicou a segunda edição (FURTADO, Manoel Basílio. Itinerário da Freguesia do Senhor Bom Jesus do Itabapoana à Gruta das Minas do Castelo, 2ª Campos dos Goytacazes: IFF/Essentia, 2016).

Basílio Furtado anotou que a bacia do Itapemirim era maior do que a do Itabapoana, mas com um estirão navegável de 39 quilômetros, enquanto o Itabapoana contava com 54 quilômetros navegáveis de Limeira à Barra. Os principais afluentes registrados do Itapemirim são rios do Norte Esquerdo, do Norte Direito, Pardo, Alegre, Castelo (talvez o mais importante pelas matas), Muqui do Norte, Muqui do Sul. O rio do Pinto, na verdade, é um canal que liga o Itapemirim, na foz, ao rio Novo. Existia nesse ponto a Vila de Itapemirim. Até então, julgava-se que o canal do Pinto fora aberto pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS), na década de 1940. Mas ele já existia desde o século XIX.

A fauna da bacia era então muito rica. Furtado encontrou os invertebrados carrapato, formigas, pulga, bicho de pé, mutuca e jequitiranaboia, à qual dedicou mais de uma página. Na bacia do Itapemirim, ele registrou piabanha, piabas vermelha e branca, timboré, pirapetinga, tainha, curvina, curimatá, sairu, surubim, acará, camarão de água doce, lagosta, robalo, mucu, lambari, traíra, morobá, espada, viola, cachimbau, cambotá ou tamoatá, jundiá, cascudo, camarão, mandi, bocarra e manjuba (Op. cit.).

Não há registros de anfíbios. Quanto a répteis, o jacaré aparece como o mais comum ao lado do jaboti e da surucucu. Entre as aves, ele anotou jaó (abundante), capoeira, diferentes inhambus, jacutinga, inhapim, caburé, andorinhas, corujas, mutum, jacu açu, jacu peba, jacu caca, macuco, várias espécies de arara, maracanãs, papagaios e periquitos. Entre os mamíferos, ele destacou várias espécies de gambá, tatu canastra, tatu peba, tatu de rabo duro, tatu mirim ou galinha, tatu bola, tamanduá bandeira ou etê, tamanduá mirim, preguiça, capivara, paca, cutia, ouriço cacheiro, caxinguelê, anta, veado, queixada, cateto, onça pintada, onça vermelha, jaguatirica, gato mourisco, morcegos, lontra, ariranha, irara, quati, mão pelada, cachorro do mato, macaco da noite ou de cheiro, mono, barbado, mico, sauá, macaco estrela. Destaque-se a identificação da ariranha. Maximiliano de Wied-Neuwied encontrou um exemplar morto, mas íntegro, na Fazenda Muribeca, na margem direita do rio Itabapoana. Pela descrição, biólogos suspeitam que seja a ariranha, espécie não encontrada na Ecorregião de São Tomé. Furtado confirma que ela já existiu no sul capixaba e bem provavelmente no norte-noroeste fluminense.

Chegando ao rio Castelo, afluente do Itapemirim, ele exclama: “… a solidão das matas, o silêncio que é apenas perturbado de longe em longe pelo piar monótono e rouco do jaó, e pelo estridor agudíssimo do grito da araponga, imprimem a este quadro uma total melancolia, que comunicando-se insensivelmente ao viandante, o torna taciturno e contemplativo. Quem nunca em sua vida gozou do ar livre das montanhas, e quem não contemplou ainda da espessura de um bosque o Alto Firmamento matizado de cintilantes estrelas em uma noite de primavera, não pode fazer uma ideia perfeita do que é a liberdade, e nem do que existe de mais sublime nas obras do Criador” (Op. cit.).

Em 1888, passa rapidamente pelo rio Itapemirim a princesa Teresa da Baviera. Mulher e naturalista, ela destoava de seu tempo até mesmo na Alemanha. Teresa informa que o rio é navegável numa extensão de 70 quilômetros (TERESA DA BAVIERA, Princesa. Minha viagem nos trópicos brasileiros. Fortaleza: André Luís Frota editor, 2014). Ela nos legou um desenho da foz do rio.

A ocupação territorial do alto Itapemirim efetuou-se lentamente a partir do século XIX. Em 23 de março de 1835, foi criada comarca com sede na vila de Itapé-Mirim, compreendendo os distritos dessa vila e de Benevente e Guarapari. Cachoeiro de Itapemirim data de 1867. Muniz Freire e Iuna foram fundadas em 1890. Muqui nasceu em 1912 Lajinha, em Minas Gerais, é 1938. Jerônimo Monteiro, de 1958. Atílio Vivacqua e Conceição do Castelo emanciparam-se em 1963. Ibitirama em 1973. Ibatiba em 1981. Vargem Alta e Venda Nova do Imigrante nasceram em 1988. Irupi é de 1991. Finalmente, Marataízes torna-se município em 1996.

Bacia do Itapemirim entre o rio-lagoa de Marobá, ao sul, e rio Novo, ao norte. 'Província do Espírito Santo', por José Ribeiro da Fonseca Silvares, 1873

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