Porque o distritão é ruim para os políticos

Por Jairo Nicolau

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08/07/2021

Jairo Nicolau

A primeira vez que ouvi a palavra distritão foi em 2007. Eu estava na Câmara dos Deputados participando de uma audiência da comissão de reforma política, quando fui indagado pelo então deputado Ronaldo Caiado (DEM-GO) se conhecia um modelo de sistema eleitoral que surgia como uma grande novidade e estava sendo chamada pelos deputados pelo estranho nome de distritão.

O nome servia para diferenciar a proposta do tradicional voto distrital. Numa eleição para a Câmara dos Deputados que empregasse o distritão, haveria uma disputa entre todos os candidatos do estado, e os mais votados seriam eleitos. No distrital, o território do estado seria recortado em circunscrições eleitorais (distritos), e cada uma delas elegeria um deputado federal. No distritão, cada estado é um distrito eleitoral; no distrital, o país seria recortado em 513 distritos.

O que aparecia como novidade é um dos sistemas eleitorais mais antigos do mundo. Até o século XIX, em quase todos os lugares, os representantes eram eleitos por sistemas eleitorais semelhantes ao distritão. O Brasil também elegeu deputados ao longo do Império e da Primeira República com variantes desse modelo. Essa forma de eleição de deputados era dominante antes que os partidos políticos se nacionalizassem e passassem a ser a organização mais importante para intermediar a relação dos eleitores com o sistema representativo.

Hoje, quase todas as democracias elegem seus deputados por intermédio de dois formatos: a) um sistema em que os partidos apresentam uma lista de nomes, e cada lista recebe uma proporção de cadeiras (representação proporcional); b) um modelo em que cada circunscrição eleitoral em que o país é dividido elege o deputado mais votado (majoritário-distrital). Um número reduzido de países combina esses dois formatos (sistemas mistos).

Podemos ver a regra do distritão (numa eleição com alguns nomes a escolher, os mais votados se elegem) sendo usada para escolher representantes de uma turma de escola, delegados de um encontro de sindicalistas ou representantes que participarão de um congresso partidário, mas há muito ele não é utilizado em nenhuma democracia tradicional para eleger representantes para a Câmara dos Deputados.

O distritão não é usado noutras democracias simplesmente porque tem muitos aspectos negativos, que têm sido apontados por muitos estudiosos no âmbito da discussão sobre a sua eventual aprovação no Brasil. Entre eles, destacaria o grande incentivo à personalização das campanhas e da atividade parlamentar, em detrimento dos partidos. Muita gente reclama que a política brasileira é personalista, que os partidos são fracos, mas no distritão essas duas características seriam levadas ao extremo.

Outro efeito negativo do distritão é o alto volume de votos desperdiçados em cada eleição. No modelo em vigor no Brasil, o voto vai necessariamente para um partido; com isso, mesmo que o nome da escolha do eleitor não seja eleito, o voto tem alguma serventia. O eleitor só “perde o voto” nas ocasiões em que um partido/coligação não elege ninguém. No distritão, o voto dado em qualquer um dos nomes que não é eleito é perdido (nas eleições para a Câmara dos Deputados em 2014, os eleitos receberam 65% do total de votos, ou seja, 35% dos votos foram desperdiçados).

Mas já me dei conta de que falar de fortalecimento de partidos e de legitimidade conferida por um grande volume de votos aproveitados numa eleição são argumentos que não sensibilizam os deputados. Desde a década passada, alguns deles se tornaram entusiastas do distritão. Esse movimento virou moda, da mesma maneira que se discutiu a opção pelo voto distrital ou distrital misto nos anos 1980 e 1990. Somente na legislatura passada a Câmara dos Deputados votou duas vezes uma proposta para aprovar o distritão (2015 e 2017). E tudo indica que o distritão será votado novamente na atual legislatura.

A seguir, apresento três razões por que acredito que o distritão seja uma péssima opção para a maioria dos políticos brasileiros. Meu objetivo é mostrar que, além de ser ruim para o sistema representativo, o distritão aumenta a incerteza e reduz as oportunidades de os deputados assumirem um mandato.

1- A competição por uma cadeira provavelmente ficará bem maior

A maior parte dos deputados sofre do que chamo de “falácia da simulação eleitoral”. Cientistas políticos costumam simular o resultado de uma eleição passada, mudando a fórmula eleitoral para mostrar os efeitos dos sistemas eleitorais. Se a coligação fosse proibida, qual seria a composição da Câmara eleita em 2018? Se os partidos que não atingiram o quociente eleitoral pudessem disputar as sobras, quem teria ganhado? Mas tais exercícios não têm poder preditivo.

Esse é o engano de muitos apoiadores do distritão. Os deputados fazem uma conta simples: “Se estou entre os mais votados do estado, provavelmente serei eleito caso o distritão entre em vigor”. Conta simples, mas com muita chance de estar errada. Não temos remota ideia de como os eleitores e os dirigentes partidários se comportarão se o novo sistema eleitoral for adotado.

Uma hipótese plausível é que a competição aumente. Os incentivos para que lideranças de fora da vida partidária se animem a concorrer é grande. Basta se filiar a um partido, se inscrever para disputar as eleições e pronto. Não tem nominata, voto de legenda, coligação, quociente eleitoral para pensar. O acesso fica mais simples para lideranças religiosas, empresários, personalidades do mundo digital e líderes de todos os tipos de organização. O incentivo para que políticos locais tentem a sorte nas eleições para deputado também deve aumentar.

2- Não há nenhuma forma de se beneficiar dos votos de outros colegas da legenda

Os partidos, frequentemente, se beneficiam da grande votação obtida por um candidato a deputado federal. Os puxadores de voto (eles existem nas legendas de todo o espectro ideológico), com suas votações expressivas, contribuem para a eleição de colegas menos votados. Para alguns partidos, o voto de legenda tem a mesma função. No distritão, o voto de legenda desaparece, e o puxador pode virar um problema para o partido.

Imagine o drama dos colegas de lista de Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e Marcelo Freixo (PSOL-RJ) se o distritão estivesse em vigor nas eleições de 2018. Ambos eram considerados eleitos antes do dia das eleições. Mas como fazer para que alguns eleitores deixassem de votar neles para escolher o nome de outro candidato dos seus partidos? “Pare de votar no Eduardo Bolsonaro e vote em fulano”, “Eleitor do Freixo, ele já está eleito, vote em beltrana”.

O Japão usou um sistema eleitoral semelhante ao distritão até os anos 1980. Um dos maiores desafios dos dirigentes era justamente coordenar o voto dos eleitores para que ele se dividisse entre os diversos nomes de um partido. Os critérios incluíam do lugar de residência até a primeira letra do nome do eleitor; algo como: eleitores cujo nome começa com a letra A, B, C e D votem em fulano; das letras E até G, votem em sicrano.

3- Não existe mais a figura do suplente do partido

Atualmente, cada partido (ou coligação) tem uma lista de deputados federais suplentes. É frequente que os primeiros suplentes assumam o mandato por um determinado período ou até definitivamente, em casos de morte ou renúncia do titular. Presidente, governadores e prefeitos de capital têm o costume de nomear deputados como ministros e secretários, o que abre a possiblidade de que os suplentes assumam o mandato.

No distritão, não há suplente da lista partidária. O Rio de Janeiro tem 46 deputados federais. Imagine que o primeiro suplente que chegou na posição 47 é do PT. Qual é o incentivo que o presidente Bolsonaro teria para nomear um deputado federal do PTB para um cargo no governo, sabendo que quem assumirá a vaga é um deputado petista?

Assim, os deputados perdem duas vezes. O titular deixa de ser convocado para um cargo no Executivo, e o suplente deixa de ocupar uma vaga no Legislativo.

Políticos odeiam a incerteza eleitoral e a redução de suas chances de sobrevivência política. Essa é uma das razões por que as reformas dos sistemas eleitorais acontecem com parcimônia noutras democracias. Na empolgação pela novidade, que parece uma solução fácil para sua sobrevivência, os deputados brasileiros perderam de vista as incertezas trazidas pelo novo sistema eleitoral.

Aumento da competição, fim do voto de legenda, ausência de coordenação eleitoral entre os candidatos de um mesmo partido, ineficiência da figura do puxador de voto e fim da suplência partidária constituem motivos suficientes para que os deputados abandonem a ideia de aprovar o distritão. Uma situação incomum em que ganham eles e o Brasil.

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