Com a transferência da capital do reino português para o Brasil, em 1808, com a abertura dos portos às nações amigas e com o Congresso de Viena, em 1815, muitos estrangeiros puderam entrar no Brasil como comerciantes, militares, naturalistas etc. Em princípio, franceses não eram amigos. As tropas napoleônicas invadiram Portugal. Os membros da monarquia e grande parte da corte teve de se deslocar para o Brasil com o insistente apoio da Inglaterra, que havia resistido ao Bloqueio Continental, em 1806.
Com a derrota definitiva de Napoleão e seu exílio na ilha de Santa Helena, em 1815, a França voltou a ser uma nação amiga de Portugal. Em 1815, um ano após à elevação do Brasil a reino unido a Portugal e Algarve, a famosa missão artística francesa chegou ao Brasil. No mesmo ano, o militar J.C.R. Milliet de Saint-Adolphe também ingressou no Brasil. Pouco se conhece de sua vida pessoal. Teria nascido em 1789, ano em que oficialmente se iniciou a Revolução Francesa? Teria sido perseguido depois de 1815 por admirar Napoleão?
Ele veio para o Brasil com seu filho Auguste e trabalhou como tipógrafo. Voltou à França em 1842 com muitas anotações sobre o Brasil. Em 1845, lançou o Dicionário Geográfico, Histórico e Descritivo do Império do Brasil, o primeiro do gênero, com quatro mil verbetes. Saint-Adolphe tinha uma curiosidade insaciável. Para satisfazê-la, viajou pelo Brasil colhendo subsídios para empreender uma obra hercúlea para uma só pessoa em 26 anos num país muito desconhecido ainda.
Tomando por base os manuscritos de Saint-Adolphe, o baiano Caetano Lopes de Moura fez acréscimos e atualizações para a segunda edição, em português, do dicionário com as bênçãos de D. Pedro II. Ele foi publicado em Paris pela Casa da Vª J.-P. Aillaud, Gullard e Cia, em 1863. Trata-se de uma obra de fundamental importância para historiadores de todas as áreas, pois informa sobre relevo, rios, povos indígenas, núcleos urbanos etc., muitos dos quais não existem mais.
Mapa do Brasil anexo ao dicionário de Saint-Adolphe
A Itapemirim, Milliet de Saint-Adolphe dedicou três verbetes. O primeiro sobre o rio Itapemirim, que ele grafou Itapé-Mirim. “Rio da província do Espírito Santo: vem do norte da serra do Pico, ramo da cordilheira dos Aimorés, corre do ocidente para o oriente obra de 8 léguas, dando navegação a canoas, rega a vila de seu nome, e perto de sua embocadura faz várias voltas antes de se ir lançar no oceano. Sobem por este rio as sumacas até a vila, e depois de carregarem descem com a enchente da maré, por não haver nesta embocadura nunca mais de 6 para sete pés de fundo.” O autor corrobora as observações de Maximiliano de Wied-Neuwied, que cruzou o rio em 1815, e do patrício August de Saint-Hilaire, que passou mais tempo em sua foz, em 1818. As muitas voltas do rio se devem a ele correr, em seu trecho final, e terreno mais plano que na maior parte do seu curso serrano. A declividade maior leva o rio a ter curso mais retilíneo, enquanto que terrenos mais planos levam um rio a derivar. Sumaca é um tipo de embarcação holandesa de porte médio muito usada na época.
Canal do Pinto, próximo à foz do rio Itapemirim
Mas Itapé-Mirim é o nome de uma vila, hoje cidade, no fim do rio de mesmo nome. “Itapé-Mirim. Vila pouco importante da província do Espírito Santo, cabeça da comarca de seu nome, 22 léguas ao sudoeste da cidade de Vitória. Teve princípio numa aldeia de índios cristianizados no fim do século XVI. Em 1754, Pedro Bueno e Balthasar Caetano Carneiro estabeleceram um engenho por de trás dessa aldeia, com uma capela que dedicaram a N. S. do Patrocínio, a qual gozou das prerrogativas de paróquia, desde o ano de 1771. Um alvará de 7 de junho de 1815, conferiu a esta povoação e aldeia o título de vila do Brasil, dando-lhe por patrimônio meia légua quadrada de terra, com condição de fazerem os moradores por sua conta a fábrica da casa da câmara, cadeia e mais acessórios municipais. O mesmo alvará assinalou-lhe por distrito o próprio terreno da freguesia. Está esta vila assentada na margem meridional do rio de seu nome, 4 léguas ao poente do monte Agá, e a meia légua do mar, e consta pouco mais ou menos de 80 casas cobertas de palha, situadas em redor de uma praça, onde se vê uma forca. Seu distrito confronta, ao norte, com o rio Piúma; ao ocidente, serve-lhe de limite a cordilheira dos Aimorés; ao sul, o rio Cabapuana; e ao nascente, o oceano. Sua população é de 2.000 habitantes, pela maior parte de índios derramados em terras férteis, porém mal cultivadas”.
Monte Agá
Não importam se, porventura, existem incorreções no verbete. O que interessa são as informações. Itapemirim começou como redução para a catequese de índios, tornando-se capela curada. Depois freguesia. Em 1815, foi elevada a vila. Portanto, o núcleo teve a trajetória normal de núcleos coloniais: capela curada, freguesia, vila e cidade. Não começou sendo logo cidade, como Salvador e Rio de Janeiro. Saint-Adolphe não registra o estatuto de cidade, pois essa elevação aconteceu bastante tempo depois de seus registros. Mas notemos a anotação de 80 casas de palha, como era muito comum na região costeira. A cobertura era mais importante que o material das paredes na classificação de uma moradia. A casa de palha resistiu por muito tempo. Terá algum leitor uma foto de casas de palha do sul do Espírito Santo?
Para situar a vila no plano geográfico, ele fornece como referências o monte Agá, o rio Piúma, hoje Iconha, e o rio Cabapuana, hoje Itabapoana, todos eles merecedores de verbetes em seu dicionário.
Antigo armazém do porto (trapiche) de Itapemirim
Por fim, o terceiro verbete sobre Itapemirim versa sobre a comarca de mesmo nome. No período colonial, a entidade maior era a colônia, com capital numa cidade. Ela se divida em capitanias que, por sua vez, dividiam-se em distritos. Com a independência, a colônia se transformou no Estado Imperial brasileiro, dividido em províncias que, por sua vez, dividiam-se em comarcas. “Itapé-Mirim. Nova comarca da província do Espírito Santo, criada por lei provincial de 23 de março de 1835, de que é cabeça a vila de Itapé-Mirim. Compreende esta comarca o distrito desta vila e os de Benevente e Guarapari.” Foi essa vila que, em 1855, apoiou a anexação da comarca da qual era cabeça ao projeto da cidade de Campos em criar uma nova província com parte das províncias do Rio de Janeiro e do Espírito Santo.