Rios e córregos do sul capixaba

Por Arthur Soffiati

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30/08/2020

Arthur Soffiati

Intelectual por vocação e ofício, ecólogo militante, pioneiro da área de História Ambiental no país

*A José Maria Miro – In memoriam

 

Em 1939, Gilberto Freyre publicou um livro pouco conhecido com o título de “Nordeste” (“Nordeste: aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisagem do Nordeste do Brasil”, 3ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1961). Nele, o autor mostra de forma impressionista os impactos da cana sobre o solo, os rios, as plantas, os animais e as pessoas. Uma observação pertinente do autor de “Casa grande e senzala” é a de que as pessoas se voltavam para os rios no século XIX porque eles eram as vias por onde se viajava e por onde chegavam e saíam os produtos comerciais. Com a ferrovia e com a rodovia, as casas deram as costas para os rios, que foram transformados em canais de esgoto e depósitos de lixo. Os rios passaram a ser lentamente envenenados. Agora mesmo recebo a notícia de que mais uma barragem será construída no rio Itabapoana para a geração de energia. Ela será erguida na bela Cachoeira da Fumaça.

            Se os rios Itapemirim e Itabapoana sofreram e continuam a sofrer toda sorte de agressões, o que dizer dos córregos que existiam entre os dois e chegavam ao mar? Eles ainda existem, mas poucos os percebem. Em mapas do século XIX, eles figuram de forma confusa e incompleta, como mostra um mapa de 1871 relativo à instalação de fios de telégrafo.

Mapa sobre linhas de telégrafo no sul do Espírito Santo – 1871

Estudei esses riachos em “Os manguezais do sul do Espírito Santo e do norte do Rio de Janeiro com alguns apontamentos sobre o norte do sul e o sul do norte” (2ª edição. Campos dos Goytacazes: Essentia, 2014). Além dos rios Itapemirim e Itabapoana, identifiquei, naquela primeira tentativa, os córregos d’Anta, do Siri, Lagoinha, Pitas, Mangue, Tiririca, Caculucage, Boa Vista e Marobá.

Até o século XVII, a unidade de tabuleiros que se estende do rio Guaxindiba ao rio Itapemirim era coberta por densas florestas estacionais semideciduais de terras baixas. Trata-se de um tipo de Mata Atlântica adaptada a clima com duas estações bem marcadas: a chuvosa e a seca. Durante a estação das chuvas, esse tipo de floresta mostra-se viçoso. Na estação seca, ela perde de 20 a 50% das folhas. Nela, encontram-se o pau-brasil, a cariniana, o gonçalo-alves e a famosa peroba-de-campos (VELOSO, Henrique Pimenta; RANGEL FILHO, Antonio Lourenço Rosa e LIMA, Jorge Carlos Alves. “Classificação da vegetação brasileira, adaptada a um sistema universal”. Rio de Janeiro: Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1991).

Mata estacional semidecidual na estação seca

Essa luxuriante floresta garantia a distribuição de água para os rios Itapemirim e Itabapoana, assim como para os riachos que corriam entre eles, formando pequenas bacias independentes. Contando com vazão mais volumosa que hoje, esses córregos conseguiam manter suas barras no mar permanente ou periodicamente abertas. Daí a formação de pequenos manguezais em seus estuários, já que o mangue é um ecossistema formado por plantas adaptadas à água salobra estuarina dos cursos d’água que desembocam no mar entre os trópicos, avançando pouco acima e pouco abaixo deles.

Contudo, essas vastas floresta que recobriam os tabuleiros foram sistematicamente derrubadas com machado e fogo. Os desmatadores buscavam madeira de lei, como as mencionadas acima, e lenha. Acontecia também de elas simplesmente serem queimadas para a abertura de terras para lavoura e pasto. O diplomata e naturalista suíço Jacob Tchudi (“Viagem às Províncias do Rio de Janeiro e São Paulo”. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Edusp, 1980) desenhou uma grande queimada de mata de tabuleiros em meados do século XIX, quando viajava da província do Espírito Santo para a do Rio de Janeiro.

Queimada – Jacob Tchudi – 1857

Até a década de 1970, o desmatamento era uma prática aceita pela sociedade e pelos governos de vários países. A partir da Conferência de Estocolmo, em 1972, cientistas e ambientalistas passaram a condenar o desmatamento, apontando os desequilíbrios ambientais causados por ele. Mas governos, empresários e população continuaram a incentivar e aceitar os desmatamentos. Só mesmo o aumento dos estudos, gerando mais conhecimentos sobre o papel das florestas para o equilíbrio ambiental, conscientizaram os habitantes e os governos dos países ricos, que passaram a fazer pressão sobre o Brasil, Congo e Indonésia, os três países ainda com extensão considerável de florestas tropicais, seja diretamente, seja por meio dos fundos de investimentos.

Para a Mata Atlântica, essa pressão chegou tarde. Com relação aos rios, a ausência de florestas gera erosão, assoreamento e irregularidades no regime hídrico. Como prova, apontamos as enchentes e as estiagens que castigam os rios Itapemirim e Itabapoana, afetando principalmente as cidades de Cachoeiro do Itapemirim e Bom Jesus do Itabapoana. Outras mais também são atingidas, assim como lavouras e pastagens.

O desmatamento foi letal para os córregos que cortam os tabuleiros em direção ao mar. Mas não apenas ele. Tais córregos estão sendo também devorados pela expansão urbana, pelos aterros, pelas estradas e pela agropecuária. Parece que estão condenados a desaparecer. O volume de água dos seus cursos foi drasticamente reduzido por todas essas intervenções antrópicas, transformando os antigos córregos em lagoas alongadas. Hoje, eles são conhecidos como lagoas e não mais como córregos. Em 2015, os geógrafos Leidiana A. Alves e José Maria R. Miro elaboraram um mapa com esses córregos alagoados, identificando, do Itabapoana para o Itapemirim, os seguintes (omito a lagoa Feia do Itabapoana por suas características particulares): Marobá, Criador, Boa Vista, Tiririca, Quarteis, Caculucage, Mangue, Pitas (Cações foi praticamente aterrado), Lagoinha, Siri, D’Anta, Encantada e Funda.

Em 2019, o autor desse artigo, juntamente com os dois geógrafos formuladores do mapa acima, publicaram o capítulo “Lagoas do sul do Espírito Santo: o lugar da natureza na fronteira urbana do sul capixaba” no livro eletrônico “Engenharia e ciências ambientais: contribuições à gestão ecossistêmica”, organizado por Maria Inês Paes Ferreira e outros pesquisadores (Campos dos Goytacazes – RJ: Essentia Editora, 2019).

No texto intitulado “Contribuição ao conhecimento das bacias hidrográficas do Espírito Santo”, de Sarmento-Soares, L. M. e Martins-Pinheiro, R. F., datado de novembro de 2012, os autores listam todos os córregos-lagoas que figuram no mapa acima e acrescentam mais quatro que já perderam seus nomes. Três foram quase soterrados pela expansão de Marataízes em direção ao sul. Os povos nativos encontrados na América pelos europeus costumavam dar nomes específicos a rios, lagoas, plantas e animais por menores que fossem. Nós, herdeiros dos europeus, aprendemos esses nomes e estamos apagando-os pouco a pouco.

De todos os córregos alagoados que se conseguiu arrolar, o mais destacado é a lagoa do Siri, conhecido ponto turístico de Marataízes. Ele foi cortado por uma ponte da ES-060, que também seccionou os demais. Existe na lagoa do Siri um manguezal quase monoespecífico de mangue vermelho. É o maior depois dos de Itapemirim e Itabapoana, mas ainda não estudado e protegido devidamente. Os manguezais do sul capixaba serão analisados no próximo artigo.

Alameda formada por mangue vermelho na lagoa do Siri

O maior deles é, sem dúvida, a lagoa do Criador, que foi barrada pela ES-060, contando com um extravasor para o mar. Todos esses córregos alagoados são protegidos pela legislação vigente como áreas de preservação permanente em toda a sua extensão. Mas ela não é respeitada. A urbanização é, atualmente, sua principal ameaça.

Trecho final do córrego do Criador

Placa na margem da lagoa Funda

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