SHANGRILÁ E A CULTURA DO DESCASO

Por Zé Peixoto

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21/11/2023

Zé Peixoto

Cineasta e produtor cultural

Logo bem cedo, fui dar meu mergulho costumeiro, no mar quase sempre sereno e acolhedor de Marataízes. Um céu carregado, com nuvens que traziam prenúncio de tempestade, imprimia um tom cinzento e melancólico à transparência do mar. E assim fiz minhas primeiras imersões diárias, recarregando debaixo d´água as pilhas para mais um dia de trabalho. Então, do nada fui invadido por uma reflexão conflitiva. Confesso não saber por qual motivo, bati o olhar no horizonte, também carregado de negrumes tormentosos, e pensei no futuro da nossa cultura. Era como se houvesse urgência em decifrar algum sinal naquela revelação, antes que de assalto, eu fosse engolido vivo, pela chegada traiçoeira da tempestade.

Não foi difícil identificar a origem do problema. A cultura no Brasil não representa a fisionomia do nosso povo. Utilizadas como políticas de governo, e não de Estado, tal como deveriam ser, as iniciativas públicas de incentivo à cultura passam à margem de uma leitura objetiva da nossa identidade. Nem sequer uma radiografia dos nossos direitos como cidadãos, é contemplada quando se pensa em cultura nesse país. Ela submerge em regiões obscuras da vida pública, desorientada por interesses políticos e ideológicos, e condicionada a manobras de grupos que se alternam no poder, sem qualquer compromisso com nossas aspirações como sociedade.  Os poderes públicos não projetam uma cultura que almeje nossa representação.   

A situação parece ainda mais alarmante quando olhamos, com certa atenção, para o descompasso administrativo e técnico, entre as diferentes esferas da administração pública. Os governos federal, estadual e municipal parecem travestidos em boias de salvação, sem que pretendam perder destaque, durante uma transmissão ao vivo pela tv, de uma enchente de proporções catastróficas em Shangrilá. Sob o pretexto de que quase nada pode ser feito, e de que são urgentes medidas protetivas frente a violência imposta pelas mudanças climáticas, ofícios, decretos e editais saem maquiados dos gabinetes federais, com fórmulas mágicas engendradas pelo Ministério da Cultura.  Além disso, políticas de investimento do Fundo Nacional de Cultura, chegam desfiguradas às Secretarias Estaduais de Cultura, e desembocam debaixo de pé d’água nos caminhos de atoleiro que caracterizam o mercadão cultural da xepa municipal. Claro! A formulação de políticas de governo não contempla a complexidade do caminho não pavimentado, entre a Esplanada dos Ministérios e os terreiros de várzea das cidades do interior, palco das feirinhas de artesanato, das rodas de capoeira, das bandas e fanfarras de pés descalços, ou dos ensaios empoeirados das festas de São João e dos blocos carnavalescos sem cordão de isolamento.

E não param aí os alertas meteorológicos, com ondas de calor extremo e aguaceiros de inspiração bíblica! Será que Shangrilá é aqui no sul capixaba? É que quando o aguaceiro despenca no quintal da gente, a boia de salvação parece ainda mais furada. Em recente evento organizado pelo Município de Anchieta, do qual fizeram parte agentes culturais e autoridades municipais da região sul do Espírito Santo, um dos compromissos propostos foi uma maior integração entre as Secretarias Municipais de Cultura, os Conselhos de Cultura e entidades e coletivos representantes do setor. É inquestionável, que no âmbito do executivo, a integração desta plataforma assegura aspectos importantes da gestão e da produção cultural. É muito bem-vinda a intenção de um primeiro passo, em direção a um planejamento estratégico do segmento cultural, com o apoio inclusive do Poder Legislativo, fundamental para regular o controle de qualidade das “boias salva-vidas”, importadas de Shangrilá. Como proposta, já é uma vitória pensar nesse tipo de estratégia, mesmo que no terreno da ação cultural, a desconexão do executivo com o mundo real da produção cultural, seja uma enxurrada de idas e vindas, com reflexões primárias e ambíguas, encharcadas de impasses administrativos, pouca capacidade crítica e interpretativa, desconhecimento processual e uma total desinformação de aspectos básicos da produção cultural.

Pretender que a visão do poder público, e dos gestores blindados por cargos de confiança, alcancem algum equilíbrio na área da Cultura, parece tempo perdido. No meio dessa tempestade anunciada, embaçada pelo desrespeito às artes no nosso Brasil, a realidade do profissional que vive e busca sustento através da cultura, é cada vez mais ameaçadora e trágica.  A correnteza arrasta de forma indiscriminada e desigual, uma sopa de detritos com propostas de cultura popular e tradicional, preservação material e imaterial de patrimônio, com cotas de representação, manifestações de arte e de cultura clássicas, e o universo criativo da experimentação, e dos movimentos alternativos e de vanguarda. Será que algum dia ainda teremos uma visão adulta e positiva do processo civilizatório, reservando à cultura o lugar de destaque que ela merece?  Sei agora que essa minha angustia, entre a paz do fundo do mar e a pasmaceira deste horizonte com essas nuvens de tormenta, é um alerta de que algo precisa ser respeitado. Ou será que o nosso destino é nadar contra uma corredeira, que busca chegar ao mar, infestada de detritos, lama, galhos, móveis, fotografias de família, livros, animais de pasto e de estimação, e até de gente morta?

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