Enquanto a Rússia degrada o sistema elétrico da Ucrânia próximo do inverno europeu, na nova e perigosa fase da guerra no país vizinho, Moscou elevou ainda mais a tensão nuclear que permeia a crise entre o governo de Vladimir Putin e o Ocidente.
Em uma semana de ataques deliberados à infraestrutura energética da Ucrânia, a Rússia destruiu 30% das centrais elétricas do país invadido em 24 de fevereiro. Novas ações nesta terça (18) deixaram parte de Kiev e de outras regiões do país no escuro e sem fornecimento de água novamente.
A acusação foi feita pelo presidente Volodimir Zelenski no Twitter, enquanto a prefeitura da capital confirmava duas mortes nesta manhã (madrugada no Brasil). Ele chamou os ataques de "terroristas", deixando "nenhum espaço para negociações com o regime de Putin".
Segundo o governo, 1.162 cidades e vilas em sete regiões seguem sem eletricidade após 190 bombardeios. O prefeito de Kiev, Vitali Klitschko, pediu a moradores que conservassem energia e guardassem água potável. Já em Jitomir, o prefeito Serhii Sukhomlin disse que o blecaute e a falta de abastecimento são totais. "Os hospitais estão usando geradores", afirmou ao site público Suspilne.
Em Moscou, o porta-voz do presidente Vladimir Putin, Dmitri Peskov, por sua vez deixou clara novamente a ameaça nuclear do Kremlin. Questionado por repórteres se os quatro territórios ucranianos anexados no dia 30 passado estavam sob o guarda-chuva atômico russo, ele foi claro.
"Todos esses territórios são parte inalienável da Federação Russa e todos são protegidos. A segurança tem o mesmo nível da oferecida ao resto do território russo", afirmou. Ainda não se sabe, contudo, qual exatamente é a fronteira da qual ele fala, já que Moscou não controla totalmente as áreas ocupadas.
Por outro lado, nas últimas semana houve uma estabilização aparente das linhas de frente que Zelenski havia conseguido romper em Donetsk (leste) -esta a província sob menor controle de Putin, com cerca de 60% do território nas mãos russas.
Já em Kherson (sul), a situação foi escrita pelo novo comandante das forças invasoras, Serguei Surovikin, como "tensa". "O inimigo continua tentando atacar posições russas", afirmou, em sua primeira entrevista à TV estatal do país desde que assumiu, no dia 8. Desde a semana passada há retiradas de moradores de áreas sob pressão.
Parte da dinâmica foi mudada após o ataque atribuído à Ucrânia contra a ponte que liga a Crimeia, anexada por Putin em 2014, à Rússia continental, no mesmo dia 8. Dois dias depois, os russos passaram a atacar alvos de infraestrutura civil com mísseis de longa distância e enxames de drones kamikazes.
Peskov foi questionado também sobre os drones, comprados do regime aliado de Teerã, que tem um avançado programa na área. Disse que o Kremlin "ignora" o emprego de tais armas, embora haja evidência fotográfica e imagens abundantes.
Segundo um analista militar russo, falando anonimamente à reportagem, Moscou comprou de 2.000 a 3.000 desses aviões-robôs, que se jogam com uma carga explosiva sobre os alvos -daí o apelido, que remete aos pilotos suicidas japoneses da etapa final da Segunda Guerra.
Como eles custam cerca de US$ 20 mil cada um, ante até US$ 13 milhões de um míssil de cruzeiro avançado, a falta de acurácia e a facilidade de interceptação compensam. Isso do ponto de vista militar e psicológico, porque no solo o resultado é mais civis mortos, dado que a precisão dos aparelhos é mais baixa.
A entrada em cena do Irã, adversário aberto dos EUA, está sendo explorada pela Casa Branca, que promete novas sanções ao país. Segundo a agência Reuters, autoridades americanas e iranianas confirmam que haverá novas entregas de drones e também de mísseis balísticos de médio alcance -o que implica estoques russos em baixa.
Do ponto de vista de narrativa da guerra, a nova orientação de Putin conseguiu de certa forma ganhar tempo e mudar o tom do noticiário negativo para Moscou, em termos domésticos, claro. É uma reconquista aparente de iniciativa, acompanhada pelo fim anunciado da impopular mobilização de 222 mil reservistas para o conflito.
A outra perna dessa tática é a questão nuclear, que vinha sendo levantada desde o começo da guerra por Putin e outras autoridades. O mesmo analista militar é aderente da tese compartilhada nesta terça pelo comandante das Forças Armadas da Noruega, segundo a qual o que importa à Rússia é a ameaça.
O preço de um ataque, mesmo com uma arma tática de baixa potência, seria politicamente impagável e traria reais riscos de uma escalada. O russo ponderou, contudo, que também achava que Putin nunca invadiria de fato a Ucrânia.
Seja como for, Peskov manteve a chama da dúvida acesa. Ela pode iluminar, contudo, um caminho para o fim do conflito, sinalizando o que Moscou consideraria seus termos: a extirpação de 18% do vizinho, fora os 4% que já controlava na Crimeia. Kiev rejeita isso, mas a tensão e a contínua crise energética acerca do gás russo na Europa pode pressionar governos.
A renovada ameaça nuclear vem um dia depois de a Otan, aliança militar liderada pelos EUA, iniciar seu exercício anual de simulação de ataques atômicos táticos. O Steadfast Noon se desenrola na Bélgica, no Reino Unido e no mar do Norte, envolvendo 60 aviões, incluindo bombardeiros estratégicos B-52.
Para complicar, a Otan espera para os próximos dias o começo da simulação anual russa, o Grom-2022, que em outras edições envolveu várias forças estratégicas, com lançamento de mísseis e emprego de submarinos.
Adicionando mistério ao clima carregado, o ministro da Defesa britânico, Ben Wallace, cancelou inesperadamente uma ida ao Parlamento e viajou para Washington para discutir questões de segurança. Segundo seu adjunto James Heappey disse à TV Sky News, Wallace "estava indo ter o tipo de conversa que… É inacreditável mesmo, o fato é que estamos em um tempo em que esse tipo de conversa é necessária".