Em sua visita de três dias ao Iraque, que começa nesta sexta (5), o papa Francisco provavelmente tem em mente dois grandes objetivos que podem parecer contraditórios, mas que são, na verdade, complementares. Sua presença naquela região conflagrada ajudaria, de um lado, a proteger os acuados cristãos do Oriente Médio e, de outro, a fortalecer o diálogo da Igreja Católica com o Islã, em especial em sua versão xiita.
O momento historicamente mais importante da visita deve estar ligado a esse segundo ponto. Além de se tornar o primeiro papa a visitar o território iraquiano (João Paulo 2º e Bento 16 tentaram viajar para lá, mas nunca conseguiram), Francisco será o primeiro pontífice a se reunir com aquele que é considerado a principal autoridade dos muçulmanos xiitas, o grande aiatolá Ali Al-Sistani.
O encontro acontecerá em Najaf, cidade que, para essa grande subdivisão do islamismo, só perde em santidade para Meca e Medina, as duas capitais do profeta Maomé.
De certa maneira, Francisco tem caminhado nessa direção desde que era o arcebispo Jorge Bergoglio, responsável pela arquidiocese de Buenos Aires. Em sua terra natal, ele desenvolveu relações cordiais com o Centro Islâmico da República Argentina e se tornou amigo do imã Omar Abboud, com quem acabou viajando para a Terra Santa depois de se tornar papa.
Gestos de aproximação como esses já vinham sendo feitos por papas anteriores. Mas o pontífice argentino deu um passo além ao incluir outro parceiro muçulmano, o grande imã egípcio Ahmad Al-Tayyeb, no próprio texto de sua mais recente encíclica, a "Fratelli Tutti" (todos irmãos, em italiano). As encíclicas são hoje os documentos papais com maior peso doutrinário, e Francisco fez questão de dizer que a colaboração com Al-Tayyeb foi uma das grandes inspirações do trabalho.
"Francisco tem conseguido falar com ramos do mundo islâmico aos quais seus antecessores não conseguiam chegar tão facilmente. A linguagem dele também ajuda. Nenhum papa antes dele chamou o Islã de 'parceiro' para se alcançar a paz no Mediterrâneo. Isso diz muito", afirma a vaticanista brasileira Mirticeli Medeiros, doutoranda em história do catolicismo pela Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma.
Medeiros aponta ainda que a preocupação do papa com a questão dos imigrantes e da perseguição a minorias étnicas e religiosas tem se estendido a grupos muçulmanos, como os uigures, na China, e os rohingyas, em Mianmar. Francisco também criticou duramente a discriminação contra os imigrantes islâmicos na Europa. "Rejeitar um migrante em dificuldade, seja ele da religião que for, por medo de diluir a cultura 'cristã' é uma deturpação grotesca tanto do cristianismo quanto da cultura", escreveu ele em seu mais recente livro, "Vamos Sonhar Juntos".
Ao lado dessas preocupações humanitárias, há as geopolíticas e as que envolvem a importância da presença histórica do cristianismo no Oriente Médio. Nesses pontos, também há considerável alinhamento entre o Vaticano e algumas das principais autoridades muçulmanas.
Não interessa a boa parte da hierarquia do Islã, por exemplo, a expansão do fundamentalismo terrorista na região ou fora dela -não apenas pelos danos que ataques a civis causam à imagem dos muçulmanos, mas também pelo fato de que os próprios clérigos tradicionais, comparativamente mais moderados, podem se tornar alvos dos radicais.
Na década passada, boa parte da população do Iraque (e especialmente as minorias não muçulmanas da região) ficou sujeita a seguidos episódios de perseguição religiosa e limpeza étnica nas mãos dos terroristas do autoproclamado Estado Islâmico. O território abriga algumas das comunidades cristãs mais antigas do mundo, algumas das quais ainda usam, nas cerimônias religiosas ou mesmo no cotidiano, a língua siríaca -basicamente uma versão do aramaico, idioma materno de Jesus e seus primeiros discípulos.
Algumas dessas comunidades estão diretamente ligadas a Roma, como a Igreja Católica Caldeia, enquanto outras são independentes. Mas Francisco, que costuma falar de um "ecumenismo de sangue" forjado pela perseguição aos cristãos no mundo moderno, pretende usar a visita como um sinal de solidariedade a todas as igrejas da antiga Mesopotâmia. Ele deve, por exemplo, visitar localidades na planície de Nínive, historicamente o centro mais importante da fé cristã no país. Também está prevista uma ida à região da antiga cidade de Ur. Segundo a tradição, trata-se da terra de origem do patriarca bíblico Abraão, considerado ancestral biológico tanto dos judeus quanto dos árabes -e, espiritualmente, também dos cristãos, reforçando o caráter inter-religioso da visita papal.
Apesar do fim do Estado Islâmico, a situação das comunidades cristãs do Iraque ainda é crítica: centenas de milhares de cristãos iraquianos deixaram o país nas últimas décadas, e os que ficaram ainda sofrem com o descaso do governo iraquiano e a presença de milícias xiitas radicais no interior do país.
Se parece haver algo de pensamento mágico na ideia de que Francisco poderia trazer um pouco de paz ao Iraque, o papa argentino já mostrou que é capaz de influenciar positivamente negociações diplomáticas complexas, como as que envolvem ações contra a mudança climática e as relações entre EUA e Cuba. Em ambos os casos, é verdade, a extrema direita destruiu os avanços pelos quais o pontífice trabalhou. Resta saber o que acontecerá no complexo contexto iraquiano.