Dificuldades econômicas, crise política e infiltração do crime organizado colocaram as instituições em risco
No período entre 1990 e o início dos anos 2000, o Espírito Santo enfrentou uma crise inédita em sua história. A política neoliberal implantada no país ampliou as dificuldades econômicas herdadas da década de 1960 com a erradicação do café, até então o principal produto gerador de rendas na economia capixaba. Somada à crise econômica, problemas políticos abriram brechas para o crime organizado penetrar nas instituições de Estado.
A Assembleia Legislativa foi o epicentro desse cenário conturbado e, posteriormente, teve atuação importante para a saída dessa conjuntura adversa. Afinal, o que aconteceu com a economia do Estado no período e que fatores contribuíram para que a crise se estendesse ao sistema político e institucional?
O doutor em Ciência Política Ueber José de Oliveira identifica como uma das questões centrais para essa crise a falta de um projeto de desenvolvimento robusto, a longo prazo, com base tecnológica. Ao contrário, afirma o professor de História da Ufes, o Espírito Santo permaneceu retroalimentando o modelo econômico introduzido na década de 1960 e pautado em grandes projetos de impacto, sem criar raízes próprias na produção industrial e tecnológica.
O Fundo de Desenvolvimento das Atividades Portuárias (Fundap), citado por Ueber, foi aprovado pela Ales e instituído em maio de 1970, no governo de Christiano Dias Lopes (Arena). Gerido pelo Bandes, o fundo era constituído pela postergação do pagamento do ICMS devido nas atividades comerciais das empresas de importação e exportação.
Essas empresas precisavam ter sede no Espírito Santo para poder se beneficiar dos incentivos fiscais do Fundap. Tais incentivos possibilitaram a instalação de modernos e estratégicos armazéns ou centros de distribuição de importados e produtos para exportação, os chamados “hubs logísticos”, principalmente na Grande Vitória.
Ainda sob o prisma econômico, o professor aborda outra questão relacionada aos grandes projetos de impacto no estado, como a Vale do Rio Doce (Vale), a Companhia Siderúrgica Tubarão (CST), a Samarco e a Celulose Aracruz. Na opinião de Ueber, esses empreendimentos operaram na logística de circulação dos produtos vindos de fora.
Agenda política
Acomodando-se à lógica desses grandes projetos e sem pensar um novo plano de desenvolvimento para o Espírito Santo, as elites capixabas acabaram perdendo também parte do controle da agenda política do estado.

O pesquisador registra também as dificuldades para se construir um projeto político hegemônico de governança, em certa medida devido à fragmentação dos atores políticos. “São muitos partidos com pequenas bancadas. Isso torna o custo da governança mais alto”, avalia.
Juntos, a falta de plano de desenvolvimento estratégico para o estado, a ausência de uma agenda política, os problemas econômicos no país e as dificuldades de governabilidade abriram caminho para a crise nas instituições, que mais tarde serviriam de instrumentos para atuação do crime organizado no Espírito Santo.
Ueber apresenta, no vídeo abaixo, um panorama sobre as forças e engrenagens políticas na Assembleia Legislativa e no governo do Estado no período de 1991-1994.
Bancada da Ales em 1991
No pleito de 1990, 25 novos deputados estaduais foram eleitos, entre os quais duas mulheres, Brice Bragato (PT) e Penha Feu Rosa (PTB), viúva do prefeito da Serra, José Maria Miguel Feu Rosa, assassinado em junho de 1990. Apenas cinco parlamentares foram reeleitos: João Coser (PT), Paulo Lemos (PDT), Valci Ferreira (PTB), Mira Seibel (PFL) e Nilton Gomes (PFL).
A renovação de 85% da bancada foi vista com otimismo por deputados eleitos. No início de mandato, um dos desafios era a imagem negativa do Parlamento, ao qual se associava o nepotismo, a mordomia, os jetons e os altos salários.
Por iniciativa do deputado Ricardo Ferraço (PTB), foi formada a Comissão Especial de Moralização que, presidida pelo deputado Umberto Messias (PSDB), visava esclarecer a população e mudar essa imagem.
A primeira sessão ordinária da Legislatura, em 1991, trouxe embates que viriam nortear a Casa nos próximos quatros anos. O recém-eleito José Carlos Gratz (PFL) protestou contra entrevista concedida à imprensa por Brice Bragato (PT), que defendia o fim da imunidade parlamentar para que os deputados pudessem ser processados ordinariamente. Gratz disse que também era a favor do fim da imunidade parlamentar, mas que o ônus da prova caberia aos seus acusadores.
Na mesma sessão, o também estreante Cabo Camata (PSDB) abordou a falta de segurança e as condições de trabalho precárias da corporação militar e defendeu a Lei de Talião no combate à criminalidade: “Olho por olho, dente por dente”, disse.
Já o deputado Aloisio Krohling (PT) discorreu sobre a moralização da política. “Hoje, vários projetos deram entrada nesta Casa falando de moralização. A onda moralizadora está chegando à Assembleia Legislativa”, disse. E prosseguiu:
“Será possível fazer política sem o princípio ético da liberdade? Será possível fazer política sem o princípio ético da igualdade? Será possível fazer política sem o princípio ético da justiça? Será possível fazer política sem o princípio ético da equidade?”, questionou o parlamentar, que era professor da Ufes.

Aposentadoria de deputados
A aposentadoria dos deputados e o Instituto de Previdência dos Deputados Estaduais (IPDE) também foram pauta da primeira sessão ordinária de 1991. Tais privilégios aos parlamentares vinham de décadas. Por iniciativa do deputado José de Moraes, o IPDE fora criado pela Lei 2.247/1966 e, em 1983, sofreu mudanças.
O IPDE garantia a aposentadoria integral depois de dois mandatos parlamentares e, após a morte do deputado, dependentes podiam continuar recebendo 50% do valor integral. Por várias vezes, essa norma foi questionada.
Em 13 de agosto de 1991, o deputado Paulo Lemos (PDT), líder do governo Albuíno, apresentou o Projeto de Lei 81/1991, que deu origem à Lei 4.541, extinguindo o IPDE. Os recursos e obrigações passaram a ser geridos pela Assembleia Legislativa.
Entretanto, a Lei 4.541 garantiu a manutenção do direito aos já recebiam o benefício e para quem já tinha contribuído mas não havia se aposentado. Até hoje, portanto, o pagamento continua sendo feito até a morte dos beneficiados e seus dependentes, por direito adquirido, uma garantia da Constituição Federal explicitada na lei estadual.
Segundo conta o ex-deputado Aloisio Krohling, os deputados que defendiam a continuidade da aposentadoria procuraram encontrar outra forma de manter o benefício.
O ex-deputado Claudio Vereza recorda que o fim do IPDE e de outros benefícios recebidos pelos deputados estaduais foi pauta já na Constituinte de 1989, sem sucesso, e posteriormente em manifestações públicas feitas por parlamentares.
Debates sobre moralidade
Na década de 1990, prosseguiram na Ales os debates sobre a moralidade das instituições. Eram recorrentes, no Plenário, críticas ao salário e aposentadoria especial dos deputados e às chamadas mordomias como auxílio-paletó e auxílio-moradia. Outros assuntos, como o voto secreto para analisar projetos e eleger a Mesa Diretora e a reeleição da Mesa, eram menos debatidos.
Mesmo assim, alguns deputados se pronunciavam em discursos contra o voto secreto, alegando que a população ficava sem saber como estavam votando os representantes do povo.

A adoção do escrútínio secreto faz-se presente nos regimentos internos de 1968, 1971, 1975, 1982, 1990, 1991, 2000, 2002, 2003 e 2004. A partir de 1990, a medida também foi usada para apreciar os vetos do Executivo. Havia também as sessões secretas, que já figuravam no regimento de 1949.
A partir do regimento de 1991, as sessões secretas eram previstas nos casos de cassação de mandatos de deputado, governador e vice; suspensão de mandato; acolhimento de denúncia contra governador por infrações penais comuns; e licença para processar deputado. Assim como o voto secreto, a sessão secreta foi retirada do regimento com a Resolução 2.700/2009.
Embora não fossem apoiados por todos os deputados, mas sim pela minoria, esses privilégios permaneciam e eram motivos de protestos da população. Ficou famosa a iniciativa do Sindicato dos Bancários de ter um grupo vestido de macacão amarelo que fazia a limpeza das escadarias da sede do antigo Parlamento, na Cidade Alta.

“Os movimentos populares protestaram, criaram o CCC, Comando de Caça aos Corruptos, via Sindicato dos Bancários, que vinha dedetizar todos os espaços da Assembleia [da antiga sede] e dos outros Poderes quando tinha uma denúncia de corrupção”, afirma a ex-deputada Brice Bragato.
Cabo Camata
No último ano de seu mandato (1994), o deputado estadual Cabo Dejair Camata decidiu participar das eleições para governador por um partido pequeno, o PSD, após ter sido expulso do PSDB por conta de seu discurso incompatível com os princípios tucanos.
Ex-dirigente da Associação de Cabos e Soldados da PMES e expulso da corporação em 1987, Cabo Camata fez sua campanha com foco na segurança pública e levou para a rua os discursos políticos feitos na tribuna da Ales a favor da morte dos criminosos.

O resultado eleitoral foi surpreendente: ele suplantou, no primeiro turno, políticos consolidados no estado como Max Mauro e Rose de Freitas, conseguindo 27,3% dos votos. No segundo turno atingiu 45% dos votos contra 55% de Vitor Buaiz (PT). Anos mais tarde, Cabo Camata foi investigado pela CPI do Narcotráfico da Câmara Federal, suspeito de envolvimento com o jogo do bicho e com a Scuderie Le Coq, grupo de extermínio em ação no estado à época.

No vídeo abaixo, o pesquisador Ueber de Oliveira conta como foram as articulações políticas para a eleição de Vitor Buaiz como governador do Estado.
O professor lembra que o governo Vitor Buaiz (1995-1998) coincidiu com o primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) e o início do Plano Real. Quando assumiu, Vitor deu aumento salarial ao funcionalismo público de 25,34%. Posteriormente, o próprio governador avaliou a medida como erro, visto que o Plano Real freou a inflação e quase zerou os juros, conta Ueber de Oliveira.
Na nova realidade, sem especulação financeira e com baixos rendimentos nos fundos de investimentos, o governo deixou de angariar recursos que garantiam o pagamento dos funcionários e outras despesas.
A implantação do Plano Real teve reflexos profundos nas economias dos estados, abrindo caminho para a crise política. Uma das tensões com o Parlamento foi o cenário privatizante desencadeado pelo neoliberalismo e pelo governo de FHC. Deputados criticavam medidas do Executivo que pudessem levar a privatizações, por exemplo, do Banestes. Além disso, Vitor Buaiz teve que lidar com a diversidade de interesses representados na Assembleia, como conta em vídeo o pesquisador Ueber de Oliveira.
Ales x Governo
Com a primeira eleição de José Carlos Gratz para a presidência da Assembleia (1997-1998), a crise entre o Parlamento e o Executivo se aprofundou, com seu clímax durante o governo de José Ignácio (1999-2002), como explica Ueber de Oliveira.
José Ignácio chegou a responder processo de impeachment. Também enfrentou pedido de intervenção federal no Espírito Santo, apresentado em abril de 2002 pela OAB-ES ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) do Ministério da Justiça. O presidente FHC, que era do mesmo partido do governo, não acolheu o pedido, limitando-se a enviar observadores e, em julho, o estado recebeu uma Missão Especial de Combate ao Crime Organizado, como conta em vídeo o pesquisador Ueber de Oliveira.
“O ES mergulhou em crise absoluta de deterioração de suas contas, deterioração institucional e o crime organizado, de certo modo, tomando conta dos principais aparelhos do Estado. Cabo Camata perdeu o pleito para Vitor Buaiz, mas foi eleito para prefeito de Cariacica. Também coincide com o governo de José Ignácio a CPI do Narcotráfico, o assassinato do radialista Antaro Filho, a morte do próprio Cabo Camata, então prefeito. O ES no final do século 20 e início do século 21 é um estado absolutamente deteriorado”, analisa Ueber de Oliveira.
Cenário conturbado reflete na criação de CPIs
O ex-deputado Claudio Vereza (PT) recorda o momento de dificuldades vivenciadas pelo Espírito Santo, principalmente no governo tucano de José Ignácio (1999-2002), como a tentativa de privatizações, a ameaça de impeachment e o pedido de intervenção federal. Vereza lembra como a política neoliberal do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) refletiu no estado, o que levou deputados e organizações populares e sindicais a reagirem.
Fim de privilégios na Ales
Sob a pressão dos movimentos populares, foram extintos os privilégios dos deputados estaduais, como lembra Vereza. Assim, foram abolidos o auxílio-paletó, aposentadoria, seguro de vida.
O voto secreto para a eleição da Mesa Diretora caiu na gestão de Vereza como presidente (2003-2004), a partir da publicação da Emenda Constitucional 50, de 22 de abril de 2003. Diz o texto: “O art. 58 da Constituição Estadual passa a vigorar acrescido do § 8º, com a seguinte redação: ‘Art. 58 (…) § 8º A eleição para a Mesa da Assembleia Legislativa ou o preenchimento de qualquer vaga nela ocorrida dar-se-ão por voto nominal e aberto’”.
Mudança de sede

A construção da nova sede da Assembleia Legislativa, na Enseada do Suá, também foi alvo de protestos na década de 1990. A ex-deputada Brice Bragato lembra da mobilização popular contra a construção da nova sede, segundo ela, fora de propósito diante da realidade econômica do estado à época – o custo do empreendimento chegaria aos R$ 35 milhões em valores da época.
“Veio a construção da sede da Assembleia, que foi uma afronta contra a população pobre do estado, porque veio como um palácio, fora de propósito, enorme, exuberante diante de uma população e servidores públicos com tantas necessidades”, recorda Brice.
Em que pese os protestos da oposição, a sede foi inaugurada a 16 de março de 2000, durante a gestão de José Carlos Gratz e do governador José Ignácio. Durante a cerimônia, a escadaria principal da nova sede ficou lotada de autoridades, com direito a apresentações da Orquestra Filarmônica do Espírito Santo e da cantora lírica Natércia Lopes e a uma chuva de rosas brancas atiradas de um helicóptero.

A construção do Palácio Domingos Martins, iniciada em 1993, atravessou as gestões da Mesa Diretora pelos deputados Marcos Madureira (1993-95), Ricardo Ferraço (1995-97) e José Carlos Gratz (1997-2003). A ideia inicial da nova sede surgiu na gestão da Mesa Diretora do então deputado Valci Ferreira (1991-1993).
De acordo com depoimentos de funcionários da Casa, há avaliação de que as novas instalações possibilitaram a potencialização das atividades parlamentares e mais conforto para todos. Essa opinião é corroborada por parlamentares, segundo os quais o espaço do antigo palácio no centro da cidade ficou insuficiente para as demandas parlamentares, conforme matéria publicada no portal da Ales sobre os 20 anos da nova sede.
Novo ciclo político
Já na nova sede, o professor da Ufes explica que aconteceu a conjunção das forças políticas do estado para recuperar as instituições e estabelecer um novo ciclo político no Espírito Santo.
A análise de Ueber vai ao encontro da avaliação do ex-deputado Claudio Vereza, que considera que a Casa, à época, inaugurou uma nova etapa política. Vale lembrar a formação de dois movimentos principais como respostas à situação degradante em que se encontravam as instituições capixabas.
A OAB-ES teve a iniciativa de organizar o Fórum Permanente contra a Violência e a Impunidade – Reage Espírito Santo, em 1999, com a participação da Igreja Católica e outras instituições religiosas, organizações populares e sindicais capixabas, entre outros movimentos. Pelo lado das elites econômicas e políticas, em 2003, surgiu o Espírito Santo em Ação, iniciativa do empresariado que ainda hoje está em atividade.
Assembleia ganha canal de TV
Os anos 2000 também marcam a comunicação da Assembleia com os cidadãos. Pouco antes de terminar a era Gratz, foi criada a TV Assembleia pela Resolução 2026, de 26 de dezembro de 2001. O início de suas operações se deu em 2 de fevereiro de 2002. A emissora do Poder Legislativo capixaba está entre as pioneiras, precedida apenas de outros três canais, entre eles, a TV Senado e a TV Câmara.
A emissora da Ales iniciou sua transmissão pelo sistema de TV a cabo e, por um período, veiculou as sessões ordinárias simultaneamente com a TVE (TV Educativa do ES). Em 2011, passou a fazer parte da Rede Legislativa de TV, o que possibilitou a transmissão em canal aberto e digital a partir de 2013.
Hoje, com 24 horas de programação, a TV Ales cobre as atividades legislativas dos parlamentares, como sessões plenárias, comissões temáticas, audiências públicas e sessões solenes. Além disso, veicula reportagens especiais sobre a história, a arte, os problemas sociais e o patrimônio cultural e natural, bem como serviços de utilidade pública.
Com as tecnologias digitais, a TV chega à população da Grande Vitória por meio dos canais 3.2 aberto e digital, canal 12 da Net, 23 da RCA e 519.2 da Sky. Seu conteúdo também está disponível nas redes sociais pelo Youtube, Facebook e pelo portal da Ales.
Série histórica sobre os 190 anos da Ales
- Assembleia do ES nasce sob o comando da elite
- Legislativo ganha força com a República
- Golpes de Vargas paralisam Legislativo
- Assembleia retoma ação política após golpes
- Questão agrária pauta Ales na década de 50
- Maioria da Assembleia Legislativa apoiou o golpe de 1964
- Sociedade elaborou Constituição de 89
- Constituições do ES no período republicano
- ES viveu crise severa nos anos 1990
- Cenário conturbado refletiu na criação de CPIs
——————————–
Para a elaboração desta série de matérias sobre os 190 anos da Assembleia Legislativa do ES foram realizadas entrevistas com especialistas e pesquisas jornalísticas no Arquivo Geral e Biblioteca João Calmon, ambos da Ales, Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, Instituto Jones dos Santos Neves, Biblioteca Pública Estadual, Biblioteca Nacional Digital, Arquivo Nacional, Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC/FGV RIO), além de consultas a artigos científicos, dissertações, teses e livros publicados.