Como se ainda fosse necessário, as gravações reveladas por Miriam Leitão no Globo trazem a prova definitiva de que, entre 1964 e 1985, os brasileiros e brasileiras viveram sob uma ditadura especialmente cruel e criminosa.
Ali se torturava — e matava cidadãos indefesos, inclusive mulheres grávidas. Como ficou registrado num dos depoimentos, uma das prisioneiras, grávida, perdeu o filho que carregava no ventre, tamanha violência que sofreu nos interrogatórios. Está tudo lá, com nomes, datas, horários — e detalhes que não deixam dúvida sobre o grau de violência cometida.
Tudo isso aconteceu com o conhecimento dos responsáveis imediatos e dos chefes deles, dos chefes dos chefes, dos generais que comandavam os superchefe e também dos ministros do Superior Tribunal Militar. Estes tinham a palavra final sobre todo mundo — e nada fizeram para impedir a ação dos subs, dos subs dos subs, no local de serviço. Como se fossem locutores de um espetáculo macabro, comentavam o que se passava, dando palpites e opiniões — mas nada faziam para impedir as tragédias que ocorriam no palco.
Ninguém assumiu suas responsabilidades — militares, jurídicas, constitucionais — para investigar e punir o sangue que jorrava sob seus narizes.
Por concordância ideológica, oportunismo ou pura covardia, todos silenciavam. No máximo, ficaram registrados diálogos que mostram indignação — quando as urgências do momento pediam muito mais do que isso, pois eram tragédias que envolviam vidas humanas.
Os diálogos explicam um desses mistérios de nossa história. Quando tudo acabou, nada aconteceu — ninguém foi investigado nem punido, numa estranha democratização na qual a luz da memória foi apagada, para que ninguém precisasse prestar contas do que fez ou deixou de fazer. As gravações mostram que, em graus maiores ou menores de responsabilidade, ninguém prestou contas pela omissão e pelo silêncio. Assim, numa grande cadeia pela impunidade, tornou-se possível perdoar quem dava as ordens — e quem obedecia.
Não surpreende que, 47 anos depois do fim da ditadura militar, o presidente da República já tenha classificado o coronel Ustra como herói e o filho deputado tenha uma atitude debochada diante das denúncias de tortura.
Não são os únicos responsáveis, porém. O Brasil é o único país da América Latina que não levou os chefes da tortura ao banco dos réus, para um julgamento justo e necessário — preferiu-se conciliar, na perspectiva de esquecer para perdoar. Foi este o acerto da transição pelo alto, que foi atualizado de modo permanente, sempre que surgia uma nova denúncia, ao longo de quase meio século.
O resultado está aí, à vista de todos. Negociou-se uma dor impossível de apagar, pois envolve crimes monstruosos covardes contra homens e mulheres que lutavam pelo país, corriam riscos — e também tinham filhos, como todo mundo.
Alguma dúvida?