Os povos isolados do Brasil estão prosperando com a abordagem de não contato – mas a vigilância permanece essencial. Especialistas revelam que o número de comunidades isoladas cresce em territórios indígenas, mas esse sucesso também aumenta o risco de contato “catastrófico”. Em Rondônia, um dos estados mais desmatados da Amazônia Legal, uma comunidade isolada está prosperando. Eles são especialistas em caça com longos arcos e em proteger suas terras de visitantes indesejados com armadilhas de estacas (estrepes) escondidas de madeira tão resistentes que conseguem furar o pneu de um trator. Foi uma dessas estacas que imobilizou uma picape 4×4 de uma equipe da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) no início deste ano – encerrando uma missão no território indígena Massaco.
Ninguém sabe como eles se autodenominam. Massaco é o nome dado ao grupo por causa do rio que atravessa seu território, próximo à fronteira do Brasil com a Bolívia. A Massaco é uma das 29 comunidades isoladas confirmadas no Brasil. Outras 85 foram relatadas, mas ainda não foram confirmadas devido às rigorosas exigências de coleta de evidências e aos entraves burocráticos necessários.
As estacas (estrepes) vêm sendo encontradas com frequência crescente e cada vez mais perto da base de onde o veterano da Funai Altair Algayer supervisiona a proteção dos 421 mil hectares do território, o equivalente a quase meio milhão de “Maracanãs”. Elas parecem transmitir uma mensagem clara: fiquem longe, não queremos invasores em nossas terras.
Ficou claro, a partir das imagens e de anos de expedições de monitoramento lideradas por Algayer, que o povo do rio Massaco está se tornando mais numeroso – uma tendência aparente entre muitas comunidades isoladas na Amazônia. Para os Massaco, isso representa uma mudança no cenário vivido nos anos 1980, quando sua terra estava cheia de madeireiros e seringueiros.
Naquela época, o mandato da Funai era tentar o contato pacífico com povos indígenas que estivessem no caminho de estradas, novos assentamentos e extração de recursos. Em 1987, agentes se prepararam para fazer contato, atraindo as pessoas ao longo de uma trilha de presentes tradicionais, como ferramentas, panelas de metal, utensílios e espelhos.
Contudo, também em 1987, especialistas da Funai em Brasília concluíram que as doenças e a miséria resultantes do contato pacífico eram catastróficas para os povos isolados e instituíram a atual política de não contato da fundação. O Massaco – o primeiro território no Brasil protegido exclusivamente para populações isoladas – tornou-se um experimento de localizar e monitorar uma comunidade isolada sem fazer contato.
Algayer começou a trabalhar no Massaco em 1992. Conhecido como Alemão (devido à sua ascendência), ele se tornou uma lenda dentro da Funai por sua documentação sistemática sobre os Massaco e por sua obstinada proteção das terras. O território tornou-se um modelo. A Funai e agências federais zeraram o desmatamento dentro de suas fronteiras em uma região onde a perda de floresta é desenfreada.
Algayer diz que, no início dos anos 1990, ele estimava a população entre 100 e 120 pessoas. Agora, ele estima 50 famílias, cada uma com quatro a cinco membros, totalizando entre 200 e 250 habitantes. Arcos pequenos, brinquedos e pegadas indicam crianças – sinais de que as famílias estão crescendo.
— Em nossas expedições mais recentes e nas imagens de satélite, vimos mais novos tapiris [cabanas de palha]. Não me surpreenderia se houvesse 300 indivíduos —, diz.
Ao longo dos anos, sua equipe mapeou 174 tapiris, fotografou milhares de artefatos, criou mapas das trilhas dos Massaco e aprendeu sobre seus movimentos sazonais para que a Funai pudesse chegar a um local semanas depois que as famílias tivessem partido. Descobriram que os Massaco queimam áreas de savana amazônica natural no início da estação chuvosa e se mudam para lá quando as áreas começam a brotar novamente.
Localizando os focos de calor registrados nas imagens de satélite em julho e agosto, sabemos com antecedência onde eles irão se estabelecer para passar a próxima estação chuvosa, de dezembro a abril —, explica Algayer.
Arcos gigantes são um mistério
Os arcos e flechas encontrados nos acampamentos abandonados dos Massaco podem ultrapassar três metros – entre os mais longos já encontrados na Amazônia.
— Como eles disparam as flechas, não fazemos ideia. Outros indígenas também tentam entender, riem e dizem que é impossível. Talvez deitados, dizem eles, mas até hoje, não temos resposta para esse mistério —, relata Algayer.
A antropóloga Amanda Villa, que acompanhou Algayer em expedições, destaca que os Massaco se distinguem de povos vizinhos pelos arcos longos, tapiris altos, uso extensivo de estacas (estrepes), colocação de crânios de animais em estacas penduradas em troncos de árvores, cabelos compridos, bigodes e ausência de brincos ou colares. Um indígena Tupari que conhece várias das línguas indígenas da região ouviu por acaso um casal Massaco conversando e relatou não entender uma palavra sequer.
É por isso que muitos especialistas da Funai suspeitam que eles vieram do outro lado do rio Guaporé, da Bolívia—, afirma Amanda. — O povo Sirionó, em particular, usava arcos similares, construções de tapiris e práticas de higiene parecidas. Mas essas são suposições. Não podemos afirmar nada com certeza.”
As novas imagens foram feitas em um local onde a Funai tem deixado ferramentas metálicas, facões e machados. Brindes, antes usados para atrair contato, agora servem para evitá-lo, dissuadindo os isolados de irem a fazendas ou madeireiras para pegar ferramentas.
Especialistas alertam que o crescimento populacional, embora positivo, pode levar ao aumento do risco de contato, exacerbado por mudanças climáticas que afetam os recursos hídricos e o tamanho necessário das terras.
Ao analisar as imagens, Algayer aponta para o que parece ser o líder do grupo.
— O mais velho, segurando o bastão, carrega os estrepes sob o braço. O bastão que ele segura serve como cajado, mas é usado principalmente para perfurar o solo e colocar as estacas. Ele tem essa postura de liderança, ajuda a posicionar os estrepes e diz onde colocá-los.
Há três homens de 30 a 40 anos, com bigodes e cabelos mais longos, mas os outros são mais jovens. — Eles são vigorosos, fortes. Não estão passando fome — afirma.
Antes dessas imagens, apenas um agente da Funai havia visto os Massaco. Em 2014, Paulo Pereira da Silva, de 64 anos, um dos membros da equipe de Algayer, estava fazendo café por volta das 14 horas quando ouviu batidas do lado de fora.
— Entrei no escritório e olhei pela janela, que tem uma tela de proteção, e vi duas pessoas ao pé da escada. Fiquei paralisado — lembra.
Nus e sem flechas, os dois homens estavam colocando os temidos estrepes na frente das escadas.
— Um homem mais velho fazia buracos com uma estaca de madeira de aroeira, e um jovem colocava as estacas — conta Pereira.
Ele gritou para os dois. O mais velho o encarou, enquanto o mais jovem correu, deixando as estacas no chão. Outros seis indivíduos apareceram e plantaram uma trilha de estacas por pelo menos dois quilômetros.
Outros povos isolados, com florestas suficientemente grandes e efetivamente protegidas, refletem o crescimento populacional dos Massaco. Em uma expedição em julho pelo GLOBO e o “The Guardian” ao território Kawahiva do Rio Pardo, no estado vizinho do Mato Grosso, especialistas da Funai encontraram evidências de um povo que eles estimam ter dobrado em tamanho nos últimos 25 anos.
Um relatório de 2023 na revista científica Nature analisou imagens de satélite que mostram que os povos isolados no estado do Acre expandiram suas plantações em 17% ao ano entre 2015 e 2022. O mesmo estudo registrou o crescimento dos isolados Moxihatëtëa, um subgrupo dos Yanomami, no norte da Amazônia. Os Moxihatëtëa inclinam enormes painéis de palha em um círculo, cada painel abrigando uma família. Nos anos 2010, sua nova aldeia tinha ampliado o anel, de 16 para 17 painéis. Em 2020, mudaram-se novamente, erguendo dois anéis com um total de 23 painéis.
Crescimentos similares foram observados no Vale do Javari, após sua demarcação como terra indígena em 2001. Os 8,5 milhões de hectares de floresta que fazem fronteira com o Peru abrigam 16 povos isolados – dez confirmados – o maior número em qualquer território no Brasil.
Beto Marubo, representante da Unijava e principal defensor dos povos isolados no Brasil, afirma que, antes da demarcação do território Javari, as pessoas “estavam morrendo”.
— Suas malocas eram minúsculas, havia madeireiros por toda parte, traficantes de drogas, todo tipo de gente perigosa. O Javari era uma terra sem lei — lembra.
— Após a demarcação e aplicação mais rigorosa das leis, as comunidades indígenas começaram a plantar hortas, diz ele. Elas não pegavam mais malária. Hoje, você vê uma nova tendência no Javari. Há lugares onde não imaginávamos que povos isolados poderiam ir, e agora eles estão aparecendo — finaliza.
Esses sucessos trazem um novo dilema: suas áreas podem em breve não ser grandes o suficiente.
— O crescimento dos povos isolados é, sem dúvida, uma notícia maravilhosa, mas, por outro lado, nos alerta para o risco iminente de contato, não apenas porque isso pode levar a uma necessidade de mais terras, mas também por causa das mudanças climáticas — pondera Algayer. — Se os povos isolados ficarem sem água em seus riachos, eles se aproximarão de outras populações — afirma.
Janete Carvalho, diretora de proteção territorial da Funai, ecoa essas preocupações.
— Vamos enfrentar isso em algum momento. Ninguém sabe onde isso vai levar, porque, em princípio, há uma chance real de que o contato aconteça —, diz ela. — Claro, nós não queremos isso.
Esta reportagem foi produzida em conjunto com o jornal inglês The Guardian. Daniel Biasetto é editor de conteúdo do GLOBO. John W. Reid é coautor de Ever Green: Saving Big Forests to Save the Planet. Eles foram apoiados nesta série por uma bolsa da Fundação Ford.