Da outra vez em que participou de uma missão humanitária no Afeganistão, em 2013, a enfermeira brasileira Ana Lúcia Bueno atendeu combatentes do Talibã em penitenciárias. Agora que o grupo fundamentalista saiu da ilegalidade e voltou ao governo, ela se senta com eles em mesas de negociação para discutir os rumos do sistema de saúde afegão.
Coordenadora de operações médicas do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) no país, Bueno, 41, tem sob sua responsabilidade 33 hospitais com 10 mil profissionais de saúde no total, além de 46 postos de atenção primária. Ela usa os conhecimentos que adquiriu durante 15 anos de trabalho em zonas de conflito em locais como Iêmen, Sudão do Sul, Somália e Faixa de Gaza.
O CICV assumiu os custos e a gestão dos hospitais afegãos após a mudança de regime, quando fundos internacionais pararam de chegar e não havia mais recursos governamentais para bancá-los.
"Nossa função é manter o sistema funcionando. A população não é responsável por quem está governando. A vida segue, mulheres continuam tendo filhos, crianças continuam adoecendo e precisando de vacina", diz Bueno, que chegou ao país em janeiro e deve ficar até junho de 2023.
"Fazer a máquina andar em contextos disfuncionais", como ela define, exige negociação -para ter acesso aos hospitais, convencer autoridades a colocar nos cargos de confiança pessoas com perfil técnico, e não religiosos, para que mulheres não sejam excluídas. "Demanda tempo, diálogo, diplomacia."
Segundo Bueno, as afegãs profissionais de saúde continuam trabalhando -o Talibã tem tentado passar uma imagem mais moderada do que quando governou o país há 20 anos, mantendo alguns direitos das mulheres, apesar de tolher vários outros.
"Em todo diálogo com eles [os talibãs] a gente reforça que não deve haver discriminação. Em algumas províncias mais conservadoras, elas precisam da escolta de um familiar homem para chegar ao trabalho, mas não é mais tão comum. Em Cabul a gente quase não vê isso mais", diz. "O que elas relatam é que se sentem desconfortáveis com olhares de reprovação. Existe toda uma geração que ganhou certa liberdade nesses 20 anos e agora está tendo que ir com cuidado, testando os limites."
Mulheres são 32% da força de trabalho nos hospitais geridos pelo CICV no Afeganistão. A maioria trabalha com enfermagem, ginecologia e obstetrícia ou clínica geral. Os locais têm alas separadas para pacientes mulheres, e elas precisam levar um familiar para se consultar com um especialista do sexo masculino -mas isso já era assim antes do Talibã.