Há quase 4 anos, o médico microbiologista francês e professor de doenças infecciosas na Universidade de Aix Marselha, Didier Raoult, afirmava ter derrotado a Covid-19 graças a uma molécula utilizada no tratamento da malária, a cloroquina.
Mas de acordo com um estudo publicado na França, o uso do plaquenil, a versão não comercial da cloroquina, não só não salvou vidas, como também matou quase 17.000 pessoas em seis países: França, Estados Unidos, Bélgica, Itália, Espanha e Turquia.
Os pesquisadores analisaram durante a primeira onda da pandemia de Covid-19, entre março e julho de 2020, o aumento da mortalidade em pacientes tratados com a cloroquina, usando três dados: o número de pacientes de Covid hospitalizados, sua taxa de mortalidade e a taxa de prescrição do medicamento.
O estudo revela que, durante a primeira onda da Covid-19, entre março e julho de 2020, 16.990 mortes foram registradas nos seis países, de maneira desigual. A Turquia teve 95 mortes, a França 199, a Bélgica 240, a Itália 1822, a Espanha 1895 e os Estados Unidos 12.739.
Para chegar ao resultado, a pesquisa utilizou um modelo multiplicativo, como explica à RFI seu principal autor, o professor de clínica médica, especializado em medicina interna no Centro Hospitalar Universitário de Lyon, Jean-Christophe Lega.
“O que devemos ter em mente é que esta é uma estimativa aproximada, no sentido de que diz respeito apenas a alguns países durante um curto período de tempo e o número total de mortes é provavelmente muito maior”, explica.
Além disso, a pesquisa não inclui o Brasil e a Índia, que prescreveram em larga escala a cloroquina durante a pandemia.
”O estudo se concentrou em seis países porque eles desenvolveram um trabalho de modelização sobre dados publicados”, explica. “Como nós utilizamos quatro parâmetros: o efeito sobre a mortalidade da cloroquina, o número de pacientes hospitalizados pela Covid-19 e depois a taxa de prescrição. Este conjunto de dados estava disponível em apenas 6 países”, salienta.
Morte por toxicidade da hidroxicloroquina
De acordo com Lega, a toxicidade da cloroquina, em pacientes já enfraquecidos pela Covid, poderia ter levado à morte de milhares de pessoas.
“Temos dados da farmacovigilância de um lado e também testes e controles randomizados de outro lado, que nos mostram que a cloroquina pode ter uma toxicidade cardíaca. Estes dados já são bem conhecidos, principalmente no uso da droga em casos de doenças auto-imunes e para a malária”, em que o remédio é normalmente indicado, explica o médico.
Mas no contexto da Covid, ele explica que houve uma evolução do quadro de pacientes que tinham doenças pouco graves, para uma doença com taxas de mortalidade importantes e, sobretudo, para inflamações no coração. “Sobre aproximadamente 10 a 30% de pacientes é muito provável que esta toxicidade tenha sido aumentada no contexto da Covid”, diz.
A principal lição do estudo, de acordo com o pesquisador, é que parte da comunidade médica tirou conclusões precipitadas.
“Porque as prescrições (de cloroquina) foram bem executadas por nós mesmos, médicos”, lamenta. Em alguns centros hospitalares, as prescrições do remédio eram feitas em 16% dos casos da Covid-19. Em outros, as prescrições chegavam até a 90% dos casos, mostra o estudo.
“Acho que é de fato uma mensagem importante a de não extrapolar resultados de estudos preliminares ou modelos celulares em grande escala, durante uma crise de saúde”, diz.
“É preciso manter a razão. Pedir cautela e urgência não é prescrever. Na verdade, a urgência é a realização de estudos com um nível de evidência muito elevado que permitam a implementação de estratégias eficazes e seguras no contexto de uma crise sanitária”, insiste.
Líderes políticos defenderam uso
O médico aponta a comunidade médica como responsável, mas durante a pandemia, líderes políticos deram apoio ao medicamento.
Na França, o presidente Emmanuel Macron foi pessoalmente conversar com Didier Raoult em Marselha.
Mas o caso do Brasil é provavelmente o mais emblemático, com o ex-presidente Jair Bolsonaro como defensor e até usuário do remédio.
O ex-presidente Jair Bolsonaro mostra uma caixa de hidroxicloroquina no Palácio da Alvorada, em Brasília.
O ex-presidente Jair Bolsonaro mostra uma caixa de hidroxicloroquina no Palácio da Alvorada, em Brasília. AFP
“Acho que o que devemos ter em mente é a cautela e assim cada um poderá permanecer no seu papel”, diz Lega.
“Na minha opinião, quando se é depositário de uma autoridade, de um mandato (…) devemos ser cuidadosos e permanecer o mais próximo dos resultados, mais uma vez, sem extrapolação, sem intuição”, diz.
A pesquisa deve reforçar dados já existentes sobre a cloroquina. “Em última análise, não geramos novos resultados quanto à eficácia e segurança do medicamento, apenas produzimos estimativas, ainda que imperfeitas, sobre as consequências que este tipo de prescrição poderia ter”, reconhece.
“Os ensaios clínicos randomizados que mostram a falta de eficácia da cloroquina e um defeito em torno da toxicidade foram realizados em 2020. Portanto, essas são informações agora bem conhecidas da comunidade médica”, diz.