Interpretar, de forma individual e detalhada, como cada organismo funciona e agir para otimizar seu desempenho. O biohacking, um dos termos mais celebrados no universo da inovação em bem-estar atual, impressiona com seus gadgets que monitoram os sentidos, terapias em ambientes sem gravidade, aparelhos que potencializam a intensidade dos exercícios e outras práticas que remetem a ambientes automatizados e futuristas. Mas a técnica que tem nome de série de sci-fi parte de um princípio bem simples, quase singelo, e com objetivos elementares. Os tratamentos aplicados são em geral para identificar intolerâncias alimentares, distúrbios do sono, encontrar o tipo mais eficaz de exercício físico, controlar queda de cabelo ou calibrar a capacidade cognitiva.
“Como em um computador, a ideia do biohacking é fazer diferentes testes até decifrar o código do sistema para poder acessá-lo. A diferença é que o código genético é muito mais complexo do que os de computadores”, define o nutrólogo Thiago Volpi, diretor clínico do Espaço Volpi, de São Paulo. É com base em exames clínicos e genéticos, testes de microbioma para identificar as bactérias que estão presentes no intestino e análises para entender os níveis de intolerância alimentar que parte a maioria dos tratamentos, sempre aliados a entrevistas e processos de anamnese (entrevista médica para traçar diagnósticos).
De posse do histórico e das particularidades de funcionamento de cada indivíduo é que o plano de ação é definido, geralmente baseado em questões nutricionais e hábitos de estilo de vida. “O biohacking é aplicado, em sua maioria, na forma de uma combinação específica de suplementos e vitaminas que vão melhorar o desempenho, independentemente do objetivo. Pode ser para potencializar a performance física ou entender processos inflamatórios da acne. O propósito é driblar as dificuldades do corpo com a ajuda de nutracêuticos e hábitos de vida desenhados sob medida”, esclarece o nutrólogo Paulo Lessa, do Instituto Lessa, no Espírito Santo. E ele complementa: “Nem todos os tratamentos são feitos por via oral. Tudo depende das necessidades pessoais. As vitaminas administradas por meio endovenoso ou intramuscular são recursos com ótimos resultados, porque são métodos de melhor absorção. A vitamina D e a B12 respondem melhor quando aplicadas de maneira injetável. A reposição de ferro é muito mais efetiva quando aplicada na veia, por exemplo. Por via oral, sempre há o risco de interferências do pH gástrico”.
Utilizando o mesmo raciocínio, Paulo também chama atenção para os implantes de chip, que promovem uma liberação contínua e programada de medicamentos, evitando esquecimentos, falta de regularidade e também sendo mais intensa em pessoas que precisam de uma absorção maior das substâncias.
Terapia diária
Para ver resultados mais vigorosos, a adoção e manutenção de hábitos e rotinas predeterminados é indispensável. Como a ideia é reprogramar o organismo, a constância das práticas e o grau de assertividade são inegociáveis – sobretudo na prática esportiva. Com exames genéticos, é possível entender a qual tipo de exercício seu corpo responde melhor e quais práticas são complementares para sua terapia. Também é importante estabelecer um cronograma com horários e atividades que funcionem de maneira cíclica e praticar exercícios de respiração com frequências programadas.
Se as atividades físicas regulares são valiosas para ajudar a estabelecer um processo de entendimento do corpo, um sono sistemático e profundo é mais significativo ainda. “Só pelo fato de dormir no escuro você já está hackeando seu organismo, porque é durante o sono que a maioria dos hormônios se restabelece, melhorando a produção de serotonina, que é o hormônio do bem-estar, da leptina, hormônio da saciedade, e da testosterona, que ajuda na libido, na produção de massa magra e na queima de gordura. Também vai estabelecer um melhor funcionamento da tireoide, que auxilia na consolidação da memória, para manter a mente mais tranquila. E, com o sono no escuro, no breu total, você aproveita melhor a produção de melatonina”, exemplifica Paulo Lessa.
Incluir boas práticas na rotina é tão representativo no biohacking que se estende até o skincare, com a massagem facial como um instrumento regulador. As manipulações no rosto, que aumentam o fluxo sanguíneo e estimulam a produção de colágeno, feitas sempre com a mesma frequência, treinam a pele para curar as deficiências e manter o ciclo de renovação de maneira mais facilitada.
Relação cibernética
Se até aqui estamos falando da relação de práticas e métodos de bem-estar já conhecidos, saiba que um universo mais inovador e mais tecnológico existe – mas ainda com pouca comprovação de resultados. “Nem os exames genéticos, nem o teste de microbioma, nem o estudo das intolerâncias alimentares vão detectar se a pessoa precisa usar um capacete com diferentes frequências, fazer uma massagem sob pressão negativa, entrar em um tanque de flutuação – que é a meditação com privação dos sentidos. Não existe ainda uma base de dados suficiente para que a gente possa determinar isso. Talvez daqui a cinco, dez anos existam dados mais consistentes”, alerta Thiago Volpi.
Os procedimentos enumerados pelo nutrólogo são itens que estão no imaginário público quando se fala em hackeamento do organismo. Mas também são parte de um cardápio oferecido pelo centro de biohacking Upgrade Labs, na Califórnia, Estados Unidos. O idealizador do espaço, que muito se parece com a academia da família Jetsons, é o guru de lifestyle Dave Asprey, criador do café turbinado Bulletproof. Asprey, que está programando seu corpo para viver até os 180 anos, é ainda o mentor da Conferência Anual de Biohacking, que em 2021 chega a sua sétima edição, em setembro, e já anunciou novidades curiosas. Veja a seguir.
• 40 Anos de Zen: Neurofeedback (uma técnica que treina o cérebro a se autorregular por meio de eletroencefalograma) que ensina a mudar as ondas cerebrais, intensificando o resultado de sessões de meditação. A promessa é a de que, depois de uma semana de tratamento, se desenvolvam padrões cerebrais iguais aos de um monge que pratica meditação há 40 anos.
• ARX: Aparelho que rastreia a capacidade muscular, alterando seu nível de resistência para corresponder ao esforço que será aplicado em determinada atividade. O resultado descrito é equivalente a uma semana de treinamento de força do corpo inteiro em uma sessão de apenas alguns minutos.
• CAROL: Bicicleta ergométrica alimentada por inteligência artificial que oferece um HIIT (treino intervalado de alta intensidade) de menos de 9 minutos, rastreando o esforço do praticante e ajustanto o nível do treino até o limite máximo.
Superpoderes
Tanto os tratamentos lineares, de investigação laboratorial, quanto as inovações high-tech são instrumentos para um público que quer ir sempre além. Segundo Thiago Volpi, o biohacking pode ser interpretado como uma busca por vantagens biológicas: “As pessoas querem ser praticamente imortais. Elas não querem envelhecer e estão atrás de superpoderes. Eu mesmo busco um superpoder, quero melhorar minha performance cognitiva. Para isso, uso nootrópicos, suplementos voltados para a melhora dos processos cerebrais, e tenho uma alimentação baseada no aprimoramento da concentração e do aprendizado”.
O desejo de ampliar a cognição, inclusive, é um dos recursos que tornaram o biohacking pop, desde que virou ferramenta dos profissionais de tecnologia do Vale do Silício, em 2019, em um movimento capitaneado por coquetéis de vitaminas e pelo supercoffee.
Na mesma esteira se popularizou o oura ring, anel que monta um banco de dados de sua atividade diária em diferentes situações (acordado, dormindo e se exercitando) e cria uma rotina personalizada de bem-estar. O príncipe Harry, o ciclista Lance Armstrong e o ator Will Smith são alguns adeptos do monitoramento ininterrupto.
O problema das iniciativas desvinculadas de acompanhamento médico é o risco da aplicação de tratamentos equivocados. “Hoje em dia, a grande maioria dos biohackers age de forma independente, sem supervisão profissional. Eles medem diferentes padrões do próprio corpo com a ajuda de gadgets e aplicativos e vão compilando dados sobre eles mesmos. É uma comunidade que troca informações pela internet que nem sempre são fundamentadas. Quem testa dietas e exercícios se submete a riscos menores. Mas muita gente faz uso de suplementos e medicamentos que podem prejudicar o organismo, causando sobrecarga ou até mesmo doenças”, pontua Thiago Volpi. Querer esmiuçar as fronteiras do corpo e buscar excelência de performance é um caminho natural, mas com limites facilmente identificáveis.