Em mais um sinal contraditório acerca de suas intenções, o Talibã afirmou que irá adotar temporariamente a Constituição de 1964, do tempo em que o país era uma monarquia e considerada um texto liberal para os padrões locais.
Por outro lado, afirmou à agência Aamaj News o ministro interino da Justiça, Abdul Hakim Sharae, a Carta será adaptada à interpretação que o grupo fundamentalista faz do Islã –o que deixa óbvias dúvidas se instrumentos como o voto feminino e o reduzido poder do clero muçulmano ficarão de pé.
O novo texto, até a confecção de um definitivo, deve remeter à lei islâmica, cuja leitura aberrante feita pelo Talibã tornou famoso seu governo de 1996 a 2001 pela brutalidade.
O documento de 1964 foi aprovado em uma loya jirga, ou grande assembleia de anciãos tribais, no reinado de Mohammed Sahir Shah (1933-1973). A Carta limitava o poder de religiosos e indicava que não havia rituais ou normas islâmicas obrigatórias a serem seguidas. O Parlamento ganhava autonomia.
Quando governou a maior parte do país, ao emergir vitorioso de uma guerra civil, o Talibã basicamente aplicou uma versão medieval das leis religiosas, removendo mulheres do espaço público.
O grupo acabou derrubado pela invasão americana de 2001, por ter apoiado a Al Qaeda, que havia perpetrado os atentados do 11 de Setembro nos EUA.
A presença ocidental acabou neste ano. A retirada gradual das últimas tropas a partir de abril levou o Talibã a montar uma ofensiva devastadora, que em duas semanas derrubou o governo apoiado pelos EUA de Ashraf Ghani.
Em 15 de agosto, o grupo retomou Cabul, acelerando a retirada de ocidentais e afegãos aliados a eles, em um festival de imagens chocantes em torno do aeroporto da capital –e o mais mortífero atentado já realizado na cidade, atribuído ao rival Estado Islâmico.
Desde então, os talibãs tentam se colocar como uma força mais moderada e interessada em integrar-se ao mundo. Prometeram espaço para mulheres na sociedade e anistia geral, mas a realidade se mostrou diferente até aqui.
Perseguições a adversários e colaboradores de ocidentais são frequentes, mulheres passaram a ser estritamente separadas de homens em locais como universidades e proibidas de fazer esportes. Execuções e amputações de membros de criminosos foram reinstaladas.
A Constituição que valia até a chegada do Talibã havia sido promulgada em 2004, após dois anos de consultas sob o comando dos ocupantes ocidentais. Ela por um lado enfatizava aspectos modernizantes do texto de 1964, mas também ampliava a influência religiosa sobre o Legislativo e setores como a educação.
O presidente tinha poderes bastante amplos também, enquanto o Talibã por ora governa com um colegiado de 12 líderes e 25 ministros, sob a supervisão do líder supremo, o mulá Hibatullah Akhundzada.
O Talibã luta para ter reconhecimento internacional e acesso a verbas e financiamento, mas até aqui conta apenas com a simpatia expressa pela China, Rússia e países do Golfo Pérsico, mas sem apoio efetivo. Há problemas sérios de gestão: a Prefeitura de Cabul disse nesta terça que a cidade corre o risco de um colapso no abastecimento de água.